sábado, 20 de dezembro de 2008

Livre arbítrio de quem?

(Ou: Sobre a suposta liberdade de explorar animais)

É típico do relativismo tentar relacionar livre-arbítrio e vegetarianismo, nas seguintes bases: o vegetarianismo é uma opção pessoal, que não deve ser defendido como uma posição moral obrigatória. Hoje gostaria de ajudar a desfazer esse mito.

Na minha interpretação, vejo o livre-arbítrio dividido em duas dimensões, uma prática e outra moral.

Do ponto de vista PRÁTICO, ninguém pode tocar no seu livre-arbítrio, nem outro homem, nem "Deus" (que é invenção do homem). Essa é a tese defendida por Ivan Karamazov, famoso personagem de Dostoievsky. Esse seu pensamento tem uma importância chave no desenrolar do romance "Os Irmãos Karamázov". Tal idéia ficou consagrada no aforismo: "se Deus não existe, tudo é permitido".

Tudo é permito? De certa forma, sim. Afinal, o ser humano é capaz, materialmente, de fazer tudo aquilo que puder conceber e que não viole as leis físicas. Apenas pela razão (reflexão) ou força (física ou moral) se pode impedir um ser humano de fazer tudo aquilo que lhe aprouver. Simplesmente cabe a ele decidir o que fazer... Sempre foi assim, e sempre será.

Do ponto de vista MORAL, porém, o livre-arbítrio tem um limite claro, indiscutível, que é a liberdade e a integridade do PRÓXIMO. Qualquer ato que viole isto é imoral, inaceitável, e justifica uma limitação do livre-arbítrio. Diferente do que pensava Dostoievsky, esse limite não vem de Deus, mas do próprio ser humano: da razão, da empatia e do impulso em preservar a sociedade e seus indivíduos.

O desafio que temos é estender esse aspecto MORAL para os demais animais: fazê-los serem reconhecidos como sujeitos portadores de direitos fundamentais à vida, à liberdade e à integridade (física e psíquica). Podemos fazer isso ao traduzir nossa moral (histórica e social) em princípios éticos universais.

Clarificando: do ponto de vista PRÁTICO, o livre-arbítrio do onívoro é o mesmo do assassino ou do estuprador. O assassino ou o estuprador têm a plena liberdade, dentro de sua mente e de suas forças, para decididir se vão matar o estuprar - ninguém pode nem é capaz de manipular suas mentes e seus impulsos. Mas, do ponto de vista da MORAL, dentro de uma ética INDIVIDUAL, e em defesa da sociedade, é errado atribuir ao assassino ou ao estuprador essa liberdade de ação. Se eles incorrem nela, devem ser punidos, e a sociedade deve buscar previnir, pela educação e difusão de valores, tal choque de liberdades (algoz X vítima). O mesmo vale para o onívoro - a liberdade do algoz não pode se sobrepôr à da vítima (ainda que esta seja de outra espécie). Se, porém, ocorre, em algum momento este choque, devemos, como já disse anteriormente, preservar a liberdade da vítima, não do algoz. A exploração animal é uma liberdade tão legítima quanto a liberdade de assassinar seres humanos ou estuprar mulheres.

Percebo esta concepção dual do livre-arbítrio como coerente com a posição abolicionista. Somos contra o especismo, certo? O que é o ser humano? Um animal. Existe algum freio à liberdade de um animal? Não. Ele segue seus instintos, seus desejos, seus impulsos, suas necessidades. Um leão abate a presa mais frágil, mais fácil de ser capturada, mesmo que seja um filhote. Mesmo animais herbívoros são capazes de comportamentos que nós julgaríamos cruéis - como ferir de morte na batalha pelo direito de acasalar. Isso ocorre também com o ser humano - somos animais, somente. Negar isso seria especismo. Negar nosso livre-arbítrio, também. Ocorre que nós também somos seres morais. Desenvolvemos princípios éticos a partir da razão, da empatia e das nossas necessidades de seres sociais. Essa característica, aliás, não nos é exclusiva. Basta observar outros animais sociais, como outros primatas, golfinhos e elefantes, e perceber que suas sociedades também vivem sob códigos morais*.

É a MORAL que freia os impulsos irrefletidos do livre-arbítrio. A moral é uma construção SOCIAL. Logo, na natureza, sim, tudo é permitido. Na sociedade, não. Por isso, devido a uma percepção limitada, o senso comum entende que a nossa moral só se refere a nós, humanos - nós a estendemos de forma muito limitada aos demais animais, apenas na medida de nossos interesses. A ÉTICA, porém, é uma construção RACIONAL, e como tal, deve observar princípios universalizáveis - todos os seres que possuem as caractarísticas relevantes para possuir um direito, devem ter este direito respeitado. Como há muito argumentamos, essa característica, que nos obriga a respeitar os direitos humanos fundamentais à vida, liberdade e integridade, é a SENCIÊNCIA, e sendo ela também uma característica dos demais animais, esses direitos - que não são direitos humanos, mas DIREITOS ANIMAIS - devem ser respeitados na universalidade de sua abrangência - todo o mundo animal.

Por fim, atribuir a nossa moral a uma entidade externa - "Deus" - é uma negação da nossa condição intrínseca de ANIMAIS e, portanto, uma manifestação de ESPECISMO. A sociedade e suas leis não vêm de "Deus", mas dos humanos, e afirmar o contrário não é um tributo, mas uma ofensa ao ser humano, à sua inteligência e sua razão.

Tentar estender a nossa moral à natureza implica reconhecer, de um lado, nossa condição de IGUALDADE, de outro, nossa DEPENDÊNCIA - pois sem a natureza nós não sobrevivemos - e, de outro, o nosso PODER de interferir nela e modificá-la de forma nociva. Assim, temos que usar com responsabilidade o poder que possuímos e nos abster de lançar mão de qualquer tipo de violência desnecessária contra a natureza (por "desnecessária" me refiro àquela que não é empregada na defesa da nossa sobrevivência IMEDIATA). Esta visão da ética implica deixar de abater, torturar, criar, comer e explorar animais. Por isso nós, veganos, devemos rejeitar qualquer discurso relativista que diga que o veganismo é uma questão de livre-arbítrio e opção individual. O veganismo é uma IMPOSIÇÃO ÉTICA.

* O tabu do incesto, por exemplo, não existe apenas entre seres humanos. Bonobos, por exemplo, que têm uma sociedade matriarcal onde o principal meio de socialização é o sexo, têm como único tabu sexual a cópula entre mãe e filho do sexo masculino.

* * * * *

OBS: Entrando de férias. Retorno em fevereiro.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

ANDA: Siga esta pegada

Entra no ar, amanhã, a Agência de Notícias dos Direitos Animais (ANDA), a primeira do gênero no Brasil. Será um espaço para congregar e difundir notícias relacionadas ao tema e tentar, assim, abrir mais espaço para o debate na grande imprensa. E o melhor de tudo: com enfoque abolicionista.

A Agência nasce com poucos recursos mas muita força de vontade e dedicação de alguns voluntários. Tudo graças ao maravilhoso trabalho de Silvana Andrade, jornalista, vegana e abolicionista, idealizadora do projeto. PARABÉNS, SILVANA!

A ANDA começou a tomar corpo no Encontro Nacional de Direitos Animais de março de 2008. Mais uma demonstração da importância do contato e do diálogo entre ativistas para criar um movimento mais forte e abrangente.

Eu estou colaborando como editor de blog e na redação de um glossário de conceitos básicos relacionados ao tema de direitos animais.

O endereço:

www.anda.jor.br

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Notas Esparsas

Bruno Müller

Sem tempo para elaborar um texto com o devido cuidado, essa semana vou fazer algumas notas curtas sobre assuntos que andaram pela minha mente nos últimos dias.

Sadia

Anda circulando pelo Orkut uma pesquisa de mercado para consumidores vegetarianos... Ao abrir a pesquisa, descobri que a empresa querendo conquistar esse nicho de mercado é não menos que a Sadia, aquela que cria animais para vender sua carcaça... Duas coisas me chamaram a atenção nas dicussões que a tal pesquisa suscitou nas comunidades. Primeiro que, ao ser confrontado com o fato de que muitos vegetarianos não compram Sadia, o homem que estava divulgando a pesquisa respondeu:

"E quanto a Sadia entrar no segmento veg é certo que vc´s não vão saber que o produto é da Sadia, pois terá outro nome devido a essa visão negativada de empresa matadora de animais." (Mantive a grafia original)

Não sei se isso foi um desafio, foi subestimar a inteligência do consumidor, ou foi um comentário sem intenção agressiva; mas até onde sei, a única forma da Sadia não estampar de forma gigantesca seu nome numa embalagem seria criar uma outra marca. No entanto, o nome do fabricante teria que aparecer, ainda que miúdo. O que não deveria escapar aos olhos de um vegano habituado a ler rótulos atrás de produtos de origem animal...

A segunda coisa que me chamou atenção foi que, embora muitos tenham questionado o fato de ser a Sadia a empresa conduzindo a pesquisa, muitos ainda não fazem tal questionamento, o que é deveras estranho, partindo de defensores dos animais. Veganismo não é só uma ação alimentar, é uma posição política, fundada no boicote. Comprar produtos vegetarianos que irão reverter lucros para a indústria da carne é incoerente e contraproducente. E é ingênuo achar que comprar produtos vegetarianos dessas empresas irá reduzir a demanda de produtos cárneos. Essa questão, por si, seria matéria para um texto mais longo. Fica para o futuro.

Churrascaria: ir ou não ir?

Questão aparentada da primeira... Já perdi a conta das vezes que ouvi falar de vegetarianos que vão às churrascarias: "Agora não é só um lugar pra comer carne! Tem buffet e diversas opções de salada!". Mas a carne continua sendo seu ganha-pão... Mostra, outra vez, uma visão equivocada da questão dos direitos animais. Não surpreende que a maioria desses exemplos que conheço seja de ovo-lacto-vegetarianos. Então, não posso chamá-los de incoerentes. Afinal, a sua dieta também mata seres sencientes. Com razão, porém, eles são questionados - e ridicularizados - por onívoros: "como assim, comer em churrascaria???". Não interessa o que você pediu. Seu dinheiro está financiando o verdadeiro negócio do estabelecimento: vender cadáver. O mesmo critério se aplica, aliás, à pizzaria. Estabelecimentos que sobrevivem diretamente da exploração animal deveriam ser totalmente boicotados pelos que se dizem "vegetarianos pelos animais". Os quais, por sinal, deveriam ser todos veganos. Quem ama, não mata. Mas se não é nosso dever amar os animais, respeitá-los o é, com certeza. Quem respeita, não mata.

Matança ecológica

Saiu no UOL e também foi comentado no Orkut: javalis selvagens, descendentes de indivíduos "importados" da Europa para iniciar uma criação no sul do Brasil (para comercializar sua carne) serão capturados e abatidos, no Paraná. O motivo? Eles comprometem o equilíbrio ecológico, ameaçam espécies nativas da fauna e da flora, e se reproduzem com rapidez, podendo haver superpopulação, pois não têm predadores naturais. A íntegra da notícia:

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/11/07/ult5772u1420.jhtm.

Confrontado com possíveis objeções de sociedades protetoras de animais, o presidente do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) disse se tratar de uma questão ambiental: "Nós não vamos causar qualquer tipo de sofrimento ao javali. Eles serão abatidos como qualquer animal de corte. Só não vamos ficar perdendo tempo com discussões inócuas".

Quanto ao primeiro argumento do ambientalista, trata-se daquilo que Tom Regan chama de "fascismo ecológico": a indiferença ao sofrimento individual em função do bem maior, que é o equilíbrio ambiental - mais ou menos como os fascistas sacrificavam seres humanos em prol do equilíbrio social e a manutenção do Estado. Quanto ao segundo argumento, "Eles serão abatidos como qualquer animal de corte", nada mais coerente com o fascismo ecológico acima descrito. Mas há alguma coisa de errada quando os ambientalistas adotam uma premissa fascista para a defesa de suas teses. Explicitam uma linha de raciocínio antropocêntrica e autoritária - exatamente as características que têm levado a humanidade e o planeta à ruína. Não consigo imaginar como vamos curar o planeta com os mesmos remédios que o deixaram doente em primeiro lugar. Quanto ao terceiro argumento, "são discussões inócuas", ele fecha com chave de ouro a explicitação do fascismo ecológico do presidente do IAP: sua opinião não está sujeita a questionamentos - PRINCIPALMENTE os de ordem ética, que são "inócuos": inúteis, sem sentido e sem efeito prático. É o típico discurso tecnicista que, em nome da racionalidade, desqualifica as críticas que tentam interpor objeções éticas a procedimentos que, tecnicamente impecáveis, deixam algumas vidas pelo caminho. A tecnocracia é, aliás, outro grande fator de destruição de vidas. Graças a ela, capitalismo e socialismo, irmanados no industrialismo, passaram a tratar rios, árvores e animais como recursos ao desenvolvimento e à riqueza material, e por isso apenas atribuídos de valor econômico - nenhum valor simbólico, ecológico ou, no caso dos animais, valor inerente. Com ambientalistas assim, estamos realmente bem servidos.

E, de novo, o pior da história foi ver vegetarianos defendendo a medida: pelo equilíbrio ambiental, pode! E, para variar, lançou-se mão do argumento da autoridade (só pode opinar quem entende do assunto) e para a falácia da obrigação de prover alternativas. Ora, não sou biólogo. Se eu sugerisse uma solução, seria pior: estaria me expondo ao descrédito. Porém, questões ÉTICAS não podem, por definição, ser tratadas como questões técnicas. Pois a ÉTICA é uma questão que atinge a todos os indivíduos e a todas as sociedades.

Outra lição do caso é que o que parece um beco sem saída evidencia os limites do nosso paradigma de pensamento - ético e ecológico. Se fizesse parte desse paradigma o respeito ao indivíduo, em primeiro lugar não nos passaria pela cabeça matar animais para solucionar o problema. Em segundo lugar, se não houvesse - ainda - soluções viáveis que não envolvessem o sacrifício, nós estaríamos buscando outra solução. Um exemplo disso? É muito mais racional testar a toxicidade de elementos químicos em seres humanos que em outros animais. Como todos concordamos que isto é antiético, eliminamos - desde a triste experiência do nazismo - esta opção, e automaticamente buscamos uma outra. Chegou a hora de deixar de considerar a matança de animais como opção também - seja por que motivo for.

A questão vai muito além do absurdo de matar animais, quando se deveria buscar uma outra forma de restaurar o equilíbrio ambiental - prejudicado não pelos javalis, mas pelos seres humanos que os trouxeram a uma terra estranha. A questão tem tudo a ver também com a filosofia política que deveria inspirar os ambientalistas - o respeito, o pluralismo, o individualismo - e aquela que, na verdade, inspira muitos deles - o tecnicismo, o autoritarismo, o organicismo. Trata-se da receita dos Estados policiais.

Ainda a pena de morte

Por fim, depois do último texto sobre a pena de morte, o assunto me voltou à cabeça por conta de dois casos.

O primeiro foi ao assistir ao documentário "Sicko", de Michael Moore, que cita vários casos de pessoas que foram deixadas morrer porque seus planos de saúde se recusaram a pagar pelo tratamento. Uma ex-executiva de um dos planos disse que, quanto mais recusas de tratamentos são feitas, mais recompensas os médicos recebem. São médicos e executivos que deixam pessoas morrerem, de doenças tratáveis, por pura ganância. São incapazes de empatia - são psicopatas. Eles matam de forma insensível, e aos montes. Em vez da cadeira elétrica (ou injeção letal), eles se tornam sujeitos respeitáveis, ricos, prósperos e poderosos.

O segundo foi lendo sobre um caso de tortura a um jovem pego fumando maconha em instalações militares. Todo ano aparecem casos de tortura e morte dentro das casernas, no Brasil. Muitas são praticadas contra soldados, cadetes, aspirantes, o que dissipa qualquer dúvida - fundamental para os conservadores - de que a morte tenha sido alguma espécie de aplicação da justiça (o que, como argumentei no texto anterior, nunca será). Até hoje ainda lutamos contra a memórias das torturas da ditadura militar. Nesse caso, essas pessoas são treinadas para matar e torturar. É de se esperar que, em algum momento, elas deixem de ter questionamentos morais sobre este ofício, fazem-no automaticamente, e até com prazer (basta ver ao filme "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick). Nossa sociedade continua sem responder a isso com deve - pelo contrário, muitas vezes aplaude, afinal sequer aceitamos a filosofia dos direitos humanos por aqui.

Mas, ao contrário de criminosos "comuns", estes criminosos ninguém jamais questiona condenar à pena capital. Pelo contrário. Estamos longe de sequer conseguir enxergas estas pessoas como criminosas (no primeiro caso) ou de universalizar o repúdio a crime previsto em lei, punindo tais indivíduos de acordo com o crime que praticaram (no segundo caso). No entanto, tais crimes são igualmente hediondos, aberrantes, injustificáveis.

Não sou a favor da pena de morte nesses casos também. Como disse, não sou a favor dela em nenhum caso. Apenas gostaria de entender a razão para esta diferença de tratamento. O que explica essa diferença não é a natureza do crime, mas a posição política, social e econômica dos criminosos. E ainda há quem alegue que a criminalidade não é um problema social...

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Princípio da igualdade de consideração de interesses e as suas implicações para o uso que os seres humanos fazem dos outros animais

Cláudio de Godoy

Hoje gostaria de discorrer um pouco sobre o princípio fundamental da igualdade de consideração de interesses. Que, em miúdos, significa que interesses iguais ou semelhantes devem ser tratados de modo igual ou semelhante, independentemente de quem seja o titular dos interesses em questão. Certamente não é nenhuma lei da física, mas todos aqueles que se consideram minimamente civilizados deveriam se importar com sua aplicação racional. E para demonstrar que este princípio está longe de ser aplicado em toda a sua plenitude em nossa atual sociedade, nada melhor do que nos voltarmos para os direitos humanos.

O conceito universal de direitos humanos não comporta nenhum tipo de relativismo moral nem admite a menor concessão em nome da tradição, dos costumes e da emoção. Os direitos básicos à vida, à integridade física e à liberdade se aplicam a todos os seres humanos, independentemente de suas características individuais. No entanto, a observância destes direitos admite algumas exceções, como no caso em que uma pessoa ameaça violar qualquer um desses direitos e é devidamente impedida de consumar o seu intento pelos meios estritamente necessários, que podem inclusive resultar em sua morte, em ferimentos ou na perda de sua liberdade. Na verdade, o direito mais fundamental que possuímos e que não admite nenhuma exceção é o de não sermos usados instrumentalmente sem o nosso devido consentimento para satisfazer às necessidades alheias, mesmo se em alguns casos estas necessidades forem legítimas e se muitas pessoas se beneficiarem com o nosso uso instrumental. É por esta razão que a escravidão, o estupro, a pedofilia, a doação de órgãos não consentida e a vivissecção estão entre o que há de mais odioso.

E por que este direito básico se aplica a todos os seres humanos, sem nenhuma exceção? De acordo com o atual paradigma, este direito se aplica exclusivamente aos animais humanos devido ao fato de que somos os únicos a possuir agência moral, ou seja, podemos conceber, compreender e aplicar conceitos abstratos como os de direito e de justiça e somos plenamente responsáveis pelas conseqüências de nossos atos. No entanto, muitos seres humanos não são agentes morais, e nem por isso são menos merecedores do direito de não serem tratados como recursos pelos outros. Em alguns casos, a ausência de agência moral é temporária, como no caso de bebês e dos comatosos, mas existem vários exemplos de seres humanos que carecem permanentemente deste atributo. Para justificar o motivo pelo qual estes chamados casos marginais também teriam os mesmos direitos básicos que os seres humanos normais, costuma-se recorrer a um sofisma artificioso denominado argumento da normalidade da espécie. De acordo com este argumento, os casos marginais entre os seres humanos teriam direitos básicos porque pertenceriam a uma espécie cujos membros normalmente são agentes morais. Na verdade, o argumento da normalidade da espécie nada mais é do que um nome pomposo para discriminação, pois trata os indivíduos de acordo com o grupo ao qual eles pertencem ao invés de tratá-los de acordo com as suas características individuais. E podemos aplicar este mesmo argumento tanto para o bem como para o mal. Com certeza, todos nós somos favoráveis a instalações para deficientes físicos em locais públicos, mas de acordo com o argumento da normalidade da espécie, estas instalações deveriam ser abolidas, pois normalmente os seres humanos são capazes de andar sem ajuda. Também seria um absurdo considerar penalmente imputáveis doentes mentais que cometeram algum crime, mas de acordo com o princípio da normalidade da espécie, eles deveriam ser julgados como se tivessem plena posse da razão, pois normalmente os seres humanos são plenamente responsáveis pelos seus atos.

Na verdade, o próprio argumento dos casos marginais é irrelevante para se determinar a razão pela qual todos os seres humanos possuem direitos básicos, pois mesmo se todos os seres humanos fossem agentes morais, não seria esta a razão pela qual eles teriam estes direitos. Temos o direito à vida, à integridade física e à liberdade pela simples razão de que temos o interesse de continuarmos a viver, de não sermos feridos e de não sermos mantidos em cativeiro, mesmo se alguns de nós fossem momentânea ou permanentemente incapazes de conceber os conceitos abstratos de “vida”, “integridade física” e “liberdade”. E de acordo com o princípio da igualdade de consideração, fundamental no combate ao racismo e à discriminação sexual, estes direitos básicos não poderiam ser negados a nenhum ser humano e a nenhuma outra criatura capaz de ter os mesmos interesses, exceto em um contexto de legítima defesa. Do mesmo modo que os racistas e os machistas discriminam com base em características biológicas em questões onde estas características são completamente irrelevantes para defender privilégios inaceitáveis, o mesmo fazem os especistas ao desdenhar dos interesses básicos dos animais que tiveram a infelicidade de serem explorados pelos seres humanos.

O atual paradigma que rege as relações entre os seres humanos e os outros animais se baseia em uma construção social que deixou de ter qualquer respaldo científico desde a publicação da “Origem das Espécies”. Sua premissa fundamental é a da superioridade dos seres humanos sobre todos os outros animais. É claro que o termo “superioridade” pode ser empregado em um sentido mais específico, quando diz respeito a uma maior complexidade morfológica, habilidade, capacidade de empatia ou a um grau de adaptação a um determinado ambiente. Mas não existe superioridade alguma no sentido lato e todas as afirmações em contrário não pertencem à esfera científica. Fundamentalmente, esta “superioridade” se baseia no nosso poderio esmagador sobre todas as outras espécies. Só que o poder nem sempre caminha de mãos dadas com aquilo que é justo.

As nossas obrigações morais para com os outros animais são de ordem eminentemente negativa, ou seja, não deveríamos tratá-los como recursos à nossa disposição. Isso não significa abrir mão do nosso direito de existir como espécie. Ao exercer legitimamente o nosso direito à autodefesa, podemos matar tanto gafanhotos, mosquitos e leões quanto outros seres humanos. O que é bem diferente da utilização de ratos para a cura do câncer em humanos, pois, neste caso, o seu único “crime” é o de pertencer a uma espécie diferente, considerada “inferior” e descartável.

Atualmente, podemos viver perfeitamente sem consumir qualquer produto de origem animal e a abolição destes produtos também resultaria em benefícios adicionais à nossa saúde e à preservação do planeta. E mesmo se pudéssemos auferir imensos benefícios com o uso de animais não humanos em experimentos biomédicos, devemos ter em mente que já abrimos mão de benefícios ainda maiores por razões exclusivamente morais, que, no caso, seriam advindos da vivisseção humana, muito mais eficiente em termos estritamente científicos. Até mesmo em casos de extrema necessidade, como é o das pessoas que estão prestes a morrer na fila de espera dos transplantes de órgãos, jamais passaria pela nossa cabeça matar uma pessoa órfã com deficiência mental profunda para doar os seus órgãos a outra pessoa cuja vida supostamente teria “muito mais significado”.

Em resumo, todos aqueles que são capazes de ter sensações jamais deveriam ser usados exclusivamente como meios para satisfazer os fins alheios, pois a sua senciência é uma característica suficiente para que todos eles sejam um fim em si mesmo, independentemente do grau de utilidade que possam ter para os outros.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Contra a Pena de Morte


Bruno Müller

Causou-me espanto recente testemunhar uma discussão acerca da pena de morte entre vegetarianos, motivado pelo caso do seqüestrador que matou a ex-namorada, há cerca de duas semanas. Não vou tratar de nada específico a este caso, a despeito da mediocridade geral com o qual tem sido abordado. Vou tratar do tema geral – infelizmente recorrente em nosso país – da aceitabilidade da pena capital, que permeia também o círculo dos auto-proclamados defensores dos animais. Tal fato apenas confirma a falta de reflexão detida e rigorosa, por parte destes, sobre em que consistem os Direitos Animais.

Mas para tratar desse assunto, como de costume, temos que antes retroceder a outro conceito, o de Direitos Humanos. Na definição de um jurista norte-americano:

Os direitos humanos são universais: pertencem a todo ser humano em toda sociedade. Eles não se diferem pela geografia ou história, cultura ou ideologia, sistema político ou econômico, ou estágio de desenvolvimento societal. Chamá-los de ‘humanos’ implica que todos os seres humanos os possuem, igualmente e em igual medida, em virtude de sua humanidade – independente de sexo, raça, idade; independente de alta ou baixa origem social, origem nacional, ligação étnica ou tribal; independente de riqueza ou pobreza, ocupação, talento, mérito, religião, ideologia ou outro tipo de comprometimento. Inferido da humanidade de alguém, os direitos humanos são inalienáveis e imprescritíveis; não podem ser transferidos, retirados ou renunciados; não podem ser perdidos por terem sido usurpados, ou pela falha de alguém em garanti-los. (HENKIN, Louis. The Age of Rights. New York-NY: Columbia University Press, 1990, pp. 2-3)

Em resumo: Direitos Humanos são direitos que se referem a TODOS os humanos, independente de qualquer distinção. São Direitos possuídos em respeito a algo inerente à condição humana. Thomas Hobbes, o primeiro contratualista, diz que o contrato social surge para prevenir a guerra de todos contra todos e proteger o homem da morte violenta. John Locke fala que a primeira propriedade de um indivíduo é seu próprio corpo. Jean-Jacques Rousseau e Thomas Paine acusam a escravidão como contrária à natureza – ou seja, é errado transformar um ser humano em instrumento dos interesses de outro ser. Todos estes autores, exceto Paine, defendem a pena de morte; mas seus argumentos vão contra si mesmos, neste ponto, como pretendemos demonstrar – pois sua premissa é da universalidade dos direitos humanos. Quanto a Paine, este notável revolucionário inglês participou da Independência dos Estados Unidos, inspirou os famosos termos de sua Declaração que afirmavam o direito à liberdade e à busca da felicidade. Opôs-se à manutenção da escravidão e, depois, participou da Revolução Francesa, sendo eleito deputado da Assembléia Nacional Constituinte – apesar de ser estrangeiro; opôs-se também à condenação à morte do rei Luís XVI – oposição pela qual ele mesmo quase pagou com a vida. Paine, aliás, também escreveu sobre os direitos dos animais.

Daí se segue, em decorrência lógica, a pergunta: o que os seres humanos possuem de comum entre si (e de distinto aos demais seres) para serem merecedores desses tais direitos? E então percebe-se que sequer precisamos recorrer aos teóricos dos Direitos Animais para notar que que este elemento comum é a SENCIÊNCIA. Todos estes autores fazem referência indireta a ela. Ela aparece na questão do “medo da morte violenta”; na rejeição à escravidão como “contrária à natureza”; na afirmação de que todo indivíduo é senhor de si mesmo.

Desta breve análise fica claro que o argumento em defesa dos Direitos Animais caminha lado a lado com o argumento em defesa dos Direitos Humanos. Um defensor dos Direitos Animais tem obrigação moral e intelectual de ser um defensor dos Direitos Humanos. Por coerência, mas também para dar validade ao seu próprio argumento. Um defensor dos Direitos Animais que se coloque a favor da tortura, da pena de morte, da injustiça extrema (e, diria eu, inclusive de qualquer forma de exploração humana, e não apenas aquela manifesta na forma de escravidão) está adotando a mesma postura preconceituosa – especista – que critica na conduta humana com os demais animais.

Dentro desse universo, o que o debate da pena de morte comporta de específico? Os argumentos em favor da pena de morte são tão vagos que servem para qualquer discurso político ou religioso – não obstante seu evidente substrato conservador – por mais distintos que estes sejam entre si. Os conservadores em geral apóiam a pena de morte para casos de crimes violentos. Os “progressistas” radicais tendem a defender a pena de morte para o que chamam de “crimes contra o povo” – as revoluções sociais do século XX foram recheadas de processos e execuções contra grandes proprietários, líderes conservadores tirânicos, insurgentes “contra-revolucionários”, ladrões de dinheiro público. Regimes autoritários de todos os matizes costumam aplicar a pena de morte contra “traidores”, sejam eles espiões, dissidentes políticos, opositores ou apenas indivíduos que não adotam a ideologia oficial do Estado. Mas, geralmente, se trata apenas de uma forma de livrar-se de figuras indesejadas ou politicamente perigosas – afinal, Cuba e China têm pena de morte para crimes de corrupção, mas perdoem-me o ceticismo se eu me recusar a acreditar que não existe corrupção nas altas esferas de poder desses países. Em outras partes do mundo o adultério ainda pode ser o motivo para uma sentença de morte. O convívio social com uma adúltera pode ser tão insuportável e nocivo para certas culturas quanto é, para a nossa, o de um assassino violento. Para cada um desses casos, existe todo tipo de justificativa para tornar a medida justificável. Seria instrutivo pesquisar, por exemplo, o que disseram o regime cubano e seus defensores sobre a execução de três fugitivos no ano de 2003: um caso que aparece tão flagrantemente aberrante para os padrões liberais surge como uma medida necessária para proteger a Revolução Cubana, dado o estado de sítio em que ela vive diante do bloqueio econômico que enfrenta.

Daí, então, podemos nos perguntar: o que faz de um argumento em favor da pena de morte melhor que o outro? Porque seria aceitável executar um assassino, mas não uma adúltera? É, portanto, a pena de morte que mergulhar no terreno do relativismo, querendo criar situações hipotéticas para a aceitação do assassinato institucional – situações que violam as premissas básicas da proteção à vida como direito básico, e que não se enquadram nas – poucas – exceções lógicas à regra. Mas tal opinião vai além do relativismo – trata-se de instrumentalismo, de atribuir respeito ao indivíduo apenas enquanto ele está enquadrado às regras da sociedade – enquanto ele é ÚTIL. Um criminoso ou é inútil – pode ser descartado – ou é nocivo – deve ser eliminado. Trata-se de uma visão tipicamente fascista e bastante afeita à forma como nossa sociedade especista trata animas “inúteis” ou “nocivos”.

No Brasil este debate vem em função do problema da violência urbana, aliado a uma tradicional tendência política conservadora da população, o que mantém acesa a arcaica chama da pena capital, que felizmente tende a se extinguir em todo o mundo. No Ocidente, apenas dois países ainda não encerraram esse debate: Brasil e Estados Unidos. Não é de surpreender que seja a Europa, região onde mais se avançou na filosofia dos Direitos Humanos e das garantias sociais – embora também lá ambos sejam violados, especialmente no caso dos imigrantes – aquela que tenha os menores índices de violência do Ocidente. E também não é de surpreender que esses direitos só não sejam plenamente protegidos exatamente no caso dos imigrantes – justamente as maiores vítimas de exclusão naquele continente, e os mais expostos à violência.

A defesa da pena de morte como medida para a contenção da violência urbana certamente erra o alvo – de longe. Não vou me alongar muito nesse aspecto, pois como opositor da pena capital por princípio, seria contra ela mesmo que ela fosse comprovadamente eficiente – o que não é – e mesmo que ela fosse comprovadamente justa – o que jamais será.

A pena capital é injusta porque viola o princípio básico da proporcionalidade. Mesmo que o crime em julgamento seja um crime de morte, não é justo aplicar uma pena na mesma medida, tirando a vida do assassino. Em primeiro lugar, a morte certa, e patrocinada pelo Estado, é certamente uma atitude mais radical que a morte promovida pelo assassino, pois esta não tem respaldo legal, e pode ser prevenida, enquanto a segunda não pode ser revogada após pronúncia final da justiça, a não ser por perdão do mandatário (no caso dos Estados Unidos, o governador do estado e, depois, o presidente da República). Nesse caso, o governador ou presidente encontra-se claramente na mesma posição que teve antes o assassino sobre a vítima: poder de vida ou morte, por mero capricho de vontade. A diferença é que o aparelho de Estado está com um, e não com outro. O governador pode matar impunemente: uma clara situação de injustiça. Essa questão já foi brilhantemente abordada pelo romancista Fyodor Dostoievsky, há mais de um século:

Matar quem matou é um castigo desproporcionalmente maior que o próprio crime. A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam (...) ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante. (...) Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com a certeza, não se vai fugir a ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. (...) Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil? (...) Não, não se pode fazer isso com o homem. (DOSTOIEVSKY, Fyodor. O Idiota. São Paulo: Editora 34, 2002 [1868])

Em segundo lugar, a pena de morte não é justa pela afirmação que carrega consigo: é impossível a sociedade subsistir ao lado de tal indivíduo, razão pela qual devemos nos livrar dele. Além de todo o substrato tirânico impresso nessa frase, que nos remete ao absolutismo do Antigo Regime, podemos simplesmente nos questionar o grau de verdade existente nela. Quantos são os indivíduos que realmente não têm condição de convívio social? E o que os leva a tamanho grau de sociopatia que nos torna imperativo excluí-los deste convívio?

É aqui que a questão social se impõe. E com ela, explicita-se ainda mais a condição intrinsecamente injusta da pena capital. Antes da violência gerar exclusão, por meio do aprisionamento ou extermínio, é a exclusão que gera violência, na grande maioria dos casos. A violência é um problema, antes de tudo, social, e como tal deve ser tratada. Social não apenas por fatores econômicos de exclusão, mas também por fatores culturais, políticos, éticos, psicológicos – famílias com caso de abuso físico e sexual, abandono, dentre outros males, são comprovadamente, formadoras de cidadãos passíveis de responder com violência no futuro – pois foi esta a linguagem que aprenderam desde cedo. Uma rápida avaliação sobre as populações carcerárias de qualquer parte do mundo explicita esse ponto: a sua imensa maioria é formada pelos estratos mais baixos da sociedade. São os indivíduos mais privados aqueles que mais recorrem à criminalidade e à violência. E, por “privados”, não me refiro apenas a bens materiais. Me refiro igualmente a proteção familiar, rede social, afeto, e outros elementos fundamentais para a saúde emocional de um indivíduo. É muito comum que assassinos em série, por exemplo, tenham sido eles mesmos vítimas de diferentes tipos de violência, na infância. Ou seja: uma vez a sociedade falhou em proteger este indivíduo. No momento em que ele, emocionalmente perturbado, reage de forma violenta, a sociedade reclama a vida que antes ela falhou em proteger. Daí, claro, os defensores da pena de morte vão alegar: estarei eu defendendo o “carinho” contra assassinos? Claro que não. Por acaso não me compadeço das suas vítimas? Claro que sim. O meu raciocínio quanto a isso é muito claro: não há justificativa razoável para o recurso a tamanha violência. Se a reação violenta do indivíduo é injustificável, mesmo diante dos males anteriormente sofridos, o mesmo vale para a reação do Estado. O Estado não pode se comportar como psicopata cujos rompantes ele quer evitar. Freqüentemente, porém, é justamente como psicopata que o Estado se comporta, razão pela qual não acredito nessa instituição; mas essa é outra discussão, e não precisamos esperar pelo fim do Estado para eliminar algumas das suas manifestações mais arcaicas, injustas, e abjetas – como é a pena capital. Uma das coisas que devemos aprender, como veganos, é isso: não esperar uma revolução social para mudarmos o que é possível.

Por outro lado, o caso do psicopata, do assassino em série, embora brandido com tanta esperteza pelos defensores da pena capital, é a minoria ínfima dos casos de crimes violentos. A maioria dos mesmos é praticada por pessoas que, com uma política inteligente de reinserção social, que inclua: atendimento psicológico, provisão de oportunidades de trabalho e estudo e educação humanista, poderia, em vez de mofar na cadeia ou jazer inerte na vala, retornar ao convívio social. Mais que isso: esses indivíduos, se tivessem acesso a tudo isso desde a infância, quase certamente não iriam recorrer ao crime. Utópico? No mundo de hoje, sim. Pois grande parte das atitudes violentas que testemunhamos são resultado das doenças e injustiças da sociedade. Isso não equivale a dizer, em outra jogada de esperteza dos reacionários, que todo pobre é um criminoso em potencial. Afinal, também existem os criminosos nascidos em berço de ouro – e estes, em geral, são mais perigosos, embora suas vítimas sejam anônimas, e por isso a comoção por eles causada é menor. Me refiro não apenas a crimes bárbaros, como o de queimar indivíduos vivos, por serem confundidos com moradores de rua - como aconteceu com o índio Galdino na cidade de Brasília. Os bem-nascidos cometem crimes talvez piores, sem serem perturbados: abuso de poder econômico, corrupção, exploração da mão-de-obra, negligência com a segurança no trabalho, dentre outros fatores que tiram mais vidas do que psicopatas ensandecidos, sem causar indignação nem levemente parecida. Quase todos estes crimes são subproduto da mesma disputa por poder e riqueza, que por sua vez geram injustiça e desigualdade, estimulando mais violência, num círculo vicioso – as exceções a isso são a minoria dos casos.

A solução verdadeira para a violência, portanto, está unicamente na transformação social que minimize ao máximo esse círculo vicioso. No caminho até lá, uma reforma penal também é fundamental. Se os criminosos forem concebidos como párias a serem retirados do convívio social, e não indivíduos portadores de direitos, naturalmente voltarão ao seu comportamento anti-social tão logo tenham a oportunidade - o índice de reincidência nos Estados Unidos e Brasil comprovam a falência do sistema carcerário. A reclusão deveria ser uma opção apenas em casos de crimes violentos – só a redução da superpopulação dos presídios já seria um passo fundamental, possibilitando disponibilizar mais recursos e concentrar profissionais no propósito da reinserção social, que deve ser o objetivo final da reclusão. O recluso não deve ser privado de seus interesses básicos, só por ter perdido – temporariamente – a liberdade. A cadeia deveria ser um intervalo para o retorno à sociedade, dentro de período pré-determinado, ao longo do qual deve-se tentar romper os condicionamentos que levaram à violência. A progressão da pena deveria, entretanto, ser mais rigorosa do que a legislação brasileira atual – e só acontecer quando houver genuíno fundamento para crer que não haverá reincidência - ou seja, atacando a raiz (social, psicológica, ou outra qualquer) do problema. Deve-se trabalhar para minimizar cada vez mais o risco da reincidência, mas também não se pode usá-la para a manutenção indefinida do encarceramento, ou para defender a pena de morte para o indivíduo que se supõe irrecuperável. Supor que o indivíduo é irrecuperável é adivinhar um crime que ainda não foi cometido (violando a presunção da inocência e o direito à segunda chance) e, portanto, punir com antecipação (algo muito parecido com a guerra preventiva de Bush): outra razão pela qual esta é intrinsecamente injusta e inaceitável. A razão final para isso é que ela é irrevogável – uma vez aplicada, não há retorno. E nenhum ser humano deveria ter esse direito de vida ou morte, poder divino pois, creia-se ou não em Deus, é este tipo de poder que as culturas atribuem aos seus deuses.

A defesa da pena capital nada tem a ver com Direitos Humanos. E, conseqüentemente, nada tem a ver com Direitos Animais. Pois ambos são direitos que devemos a algum indivíduo devido a algo inerente à sua condição – ou seja, que existe independente de qualquer ação externa. A leitura mais coerente do que concede direitos a TODOS os seres humanos opta pela única coisa que é comum a todos eles, e que, portanto, pode ser genuinamente classificada como “inerente”: a SENCIÊNCIA. Desse modo, todos os Direitos Humanos fundados na seciência – o direito à vida, à liberdade, à integridade física e psíquica – devem ser extendidos a todos os seres que possuem esses mesmos interesses – ou seja, todos os seres do mundo animal. O respeito a esses interesses básicos dos seres sencientes não é uma questão de mérito, é uma questão de direito inerente. Portanto, o debate sobre a pena de morte não pode ter lugar nos círculos abolicionistas. Aplicar o critério do mérito para o direito à vida humana seria, para nós, defensores dos Direitos Animais, mais uma vez bifurcar a aplicação de critérios: senciência, para animais não-humanos; mérito, para animais humanos. Trata-se de esquizofrenia moral digna de onívoros e ovo-lacto-vegetarianos. Além da clara incoerência e absoluta arbitrariedade dessa decisão, trata-se de restaurar o especismo no sistema. Uma jogada não só eticamente condenável, mas estrategicamente equivocada: repor o mérito na centralidade da atribuição de direitos, além de nocivo para os próprios seres humanos, é nocivo para os animais não-humanos, de quem tantos dizem não possuírem direitos por não poderem assinar contratos, fazer acordos de paz, aceitar preceitos morais ou compor belas sinfonias.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Da inevitabilidade dos danos incidentais como desculpa para continuar explorando os animais

Por Cláudio de Godoy

Ao examinar as opções de sobremesas em um restaurante vegetariano, uma conhecida minha vegana se deparou com a ubiqüidade do mel em sua preparação. Ao sugerir aumentar o número de sobremesas veganas ao dono do estabelecimento e, subliminarmente, questionar o uso do mel em praticamente todas elas, ela se defrontou com o seguinte argumento: o número de animais mortos incidentalmente na produção de açúcar supera de longe o de abelhas mortas para a produção de mel. Ou seja, seria legítimo explorar seres sencientes caso a opção vegana fosse mais danosa em termos globais.

Por trás deste aparente dilema existem duas abordagens éticas distintas. Se nos preocupamos mais com o resultado global das ações dos agentes morais do que com as suas intenções e não reconhecemos a existência de direitos morais, adotamos uma ética conseqüencialista, onde o que importa é o resultado global dessas ações, independentemente dos meios pelos quais eles foram alcançados. Já em uma ética deôntica ou do dever, as ações dos agentes morais devem se basear na observância estrita de algumas normas, independentemente de suas conseqüências globais.

Voltando à justificativa levantada no primeiro parágrafo, as mortes causadas pela agricultura nada mais são do que uma velha desculpa de quem não quer abrir mão de produtos advindos da exploração animal. Se nossas fontes de alimento são atacadas, é óbvio que podemos agir em legítima defesa. Ou melhor, seria mais uma questão de conflito de interesses básicos, pois as “pragas” também estão legitimamente à procura de alimento. Como não podemos persuadi-las racionalmente a não "roubar" os nossos alimentos, temos que tomar alguma medida, de preferência a que cause o menor dano possível a elas. Há métodos melhores do que o uso de agrotóxicos para proteger as nossas plantações do ponto de vista destes animais, como o da agricultura orgânica, que inclusive reduziriam consideravelmente os danos incidentais, mas, em uma sociedade que usa deliberadamente seres sencientes como recursos, a sorte das "pragas" seria uma de suas últimas preocupações. Mas uma coisa é certa: violar deliberadamente os interesses de indivíduos sencientes em uma situação de conflito de interesses básicos é bem diferente de aprisioná-los, explorá-los e matá-los para usar os seu corpos como objeto.

E quanto às mortes colaterais de seres sencientes resultantes de nossas atividades cotidianas? Existe uma grande diferença entre causar um dano deliberadamente e causar um dano incidentalmente. No primeiro caso, temos a intenção explícita de violar um interesse alheio. No segundo caso, não temos a menor intenção de causar danos a ninguém, mas estamos cientes de que há uma grande probabilidade de que eles ocorram e de que é praticamente impossível evitá-los, pois, a não ser que nós moremos na estratosfera e nos alimentemos apenas de ar, a maior parte do espaço que ocupamos necessariamente é fruto da expulsão de outras criaturas de seu território e tudo aquilo que nós consumimos e descartamos na maioria das vezes causa danos a terceiros. Temos o dever de minimizar estes danos, mas, pelo menos com a atual tecnologia, é humanamente impossível reduzí-los a zero.

Na grande maioria das vezes, a pecuária é responsável por um número bem maior de mortes indiretas, pois, se for intensiva, implica na produção de grãos para alimentar os animais que poderiam ser consumidos diretamente por muito mais pessoas, e, se for extensiva, exige uma superfície bem maior de pastagens para gerar a mesma quantidade de nutrientes que poderia ser produzida em uma superfície bem menor com o cultivo de vegetais. Mas mesmo se a criação de animais causasse menos danos colaterais do que a agricultura, ainda assim teríamos o dever de não usar nenhum indivíduo senciente como recurso, pois os deveres diretos sempre se sobrepõem aos deveres indiretos em uma ética baseada no dever. É o que se verifica no caso das abelhas: teríamos que preferir consumir uma quantidade de melado de cana cuja produção causou a morte de milhares de indivíduos ao invés de explorar deliberadamente as abelhas para a obtenção de seu mel.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Poder que o Individuo Tem de Mudar o Mundo

Bruno Müller

Essa é uma velha discussão: qual o papel do indivíduo na história? Em uma de suas mais célebres frases, Karl Marx afirma, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Tal afirmação geralmente é percebida como a acepção de que os indivíduos estão submetidos a estruturas e relações pré-existentes, das quais não podem escapar. Levado ao extremo do estruturalismo, tal concepção nega ao indivíduo toda e qualquer possibilidade de interferir sobre a realidade e libertar-se dos condicionamentos, tese que ganhou força no século XX sob a denominação de “morte do indivíduo”.

Por outro lado, existem aqueles que vêm o exemplo de indivíduos como Napoleão Bonaparte, Vladimir Lenin, Adolf Hitler ou Mohandas Gandhi, e proclamam que indivíduos “extraordinários” podem mudar os rumos da história (seja qual for a conseqüência desse extraordinário).

Na verdade, uma análise da excepcionalidade de certos indivíduos apenas reforça a tese de que “uma andorinha não faz verão”. Qual seria a capacidade de Adolf Hitler liderar um extermínio em massa de judeus se não houvesse um anti-semitismo amplamente disseminado na sociedade alemã, combinado com a percepção de que os judeus eram uma minoria privilegiada? Como Napoleão poderia liderar os exércitos da França, sendo ele um humilde plebeu, nativo da ilha da Córsega, apenas 10 anos antes, em 1789, quando apenas aristocratas poderiam ser oficiais do exército? Como Lenin poderia ter liderado uma revolução social na Rússia, se o czarismo não tivesse mergulhado esse país na miséria e numa guerra imperialista inútil para a maioria da população? Qual teria sido o sucesso da pregação de Gandhi por resistência pacífica e desobediência civil se, em vez de indiano, ele fosse alemão ou inglês? A habilidade desses homens, indiscutivelmente talentosos, consistiu em captar com precisão o espírito da época, e usá-lo em seu próprio proveito, ou das teses que defendiam. Naturalmente, esses exemplos mostram que o indivíduo pode sim, fazer diferença, mas num nível sutil e dentro dos limites impostos pela cultura, pelas estruturais sociais, pelo contexto histórico e geográfico.

No entanto, se verificarmos o tanto que estes e outros indivíduos conseguiram operar nas suas sociedades, veremos que as mudanças promovidas por grandes líderes são, via de regra, superficiais. As estruturas apenas mudam por um processo histórico longo. Nenhum deles transformou a estrutura de poder, a forma de pensar das sociedades que lideravam – mesmo aqueles que assim desejavam. O máximo que os líderes políticos conseguem fazer é agir como artífices de uma mudança que já se delineava no horizonte.

Isso implica dizer que, de fato, nenhum indivíduo tem o poder de mudar a realidade? Não. Geralmente limita-se o debate sobre o papel do indivíduo na história à ação dos “grandes homens”, dos “grandes líderes”. A multidão, mesmo para os supostos defensores do homem comum, é formada por uma massa amorfa, que navega inconsciente das forças históricas à sua volta. O indivíduo não é nada sem a coletividade, costumam dizer essas pessoas. A sociedade só muda coletivamente. Mas, calma... E a coletividade, o que é? A coletividade pensa, vive, sofre, sonha?

A coletividade nada mais é do que um aglomerado de indivíduos. É o indivíduo, não a nação, a etnia ou a família, o núcleo central da sociedade. Pois é o indivíduo que pensa, vive, sofre e sonha. Não foi Lenin, mas os indivíduos russos que revolucionaram a Rússia. Não foi Gandhi, mas os indivíduos indianos que tornaram a Índia independente. Portanto, qualquer sistema social que não leve em consideração os interesses básicos, a integridade física e psíquica de TODOS os indivíduos é inerentemente injusto. Não basta que essa consideração esteja proclamada verbalmente – quase todos os sistemas de crenças precisam alegar que se preocupam com todos os indivíduos. De outra forma, estariam fadados ao fracasso. Me refiro às conseqüências concretas, para os indivíduos, da aplicação desses sistemas de crenças. É aqui que a maioria das ideologias falham, até porque todas elas estão sujeitas a lacunas. É aqui também que devemos verificar quem deve ter prioridade: se são os indivíduos que devem se ajustar às idéias, ou se são as idéias que devem se ajustar aos indivíduos, como eu acredito. Não apenas por questões de princípios, mas igualmente porque nenhuma mudança imposta de cima pra baixo é duradoura. Há uma mudança muito mais profunda, e muito mais sutil, que nenhum Napoleão, nenhum Hitler, nenhum Lenin, nem mesmo um Gandhi é capaz de liderar. Essa mudança é uma mudança social, sim. Mas dela depende uma mudança de consciência.

Não é a coletividade abstrata que transforma a sociedade. São os indivíduos que, coletivamente, mudam a sociedade. Essa mudança não é coordenada nem precisa ser articulada verbalmente. Mas depende de uma transformação de consciência. Foi assim que, ao longo do tempo, os privilégios de nascimento e a idéia de que há seres humanos superiores a outros têm se tornado insuportáveis, após terem sido considerados com realidades naturais por séculos. E é assim que será com o reconhecimento dos animais não-humanos como portadores de direitos inerentes e invioláveis, direitos esses derivados tão somente de sua condição de seres sencientes.

O caminho é árduo, entretanto. Pois o ser humano teme as mudanças como um desafio à sua identidade e à sua estabilidade, porque teme que a mudança comprometa, em última instância, sua própria integridade. Por isso, é mais fácil, mais cômodo e mais seguro manter tudo como está. É prático, atraente, e aparentemente convincente, alegar que “uma andorinha não faz verão”. Uma, não; mas muitas, sim. E é nisso que devemos pensar, quando confrontados com o desafio da transformação social. O desafio da libertação animal – humana e não-humana. Não é suficiente justificar nossa acomodação, supondo que nossa atitude desaparecerá numa multidão de conformismo: afirmar que um vegano não faz diferença. Pois são as pequenas e imperceptíveis atitudes individuais que põem a história em movimento, abalam as estruturas dominantes e transformam a realidade de forma duradoura e permanente – pois uma vez posta em movimento, a história não volta atrás. A mudança social passa necessariamente por duas fases: tomada de consciência e a coragem de agir em conformidade com ela. Para os animais, isso significa: promover os seus direitos, respeitá-los, boicotar e combater a exploração em todas as suas formas. Não podemos, portanto, fugir à responsabilidade que traz o despertar da consciência. Pois não é O indivíduo, mas são OS indivíduos que podem romper com a realidade de dominação e exploração que resume a experiência humana e promover um mundo verdadeiramente livre, não apenas para toda a humanidade, mas para todos os animais do mundo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Direitos Animais: por que são tão duros de engolir?

Cláudio de Godoy*

Muitas vezes, as discussões sobre direitos animais não chegam a lugar nenhum, pois sua essência não costuma ser compreendida de imediato para quem nunca havia pensado sobre isso. Conceitualmente, a idéia de estender nossos horizontes morais a outras espécies de modo coerente com os princípios que já adotamos não é uma das questões mais complexas que existem, mas as barreiras psicológicas são gigantescas e intimidadoras. Sem falar nas de ordem culinária.

A raiz de qualquer pensamento ético é emocional e reside em nossa capacidade de nos colocar no lugar dos outros. Mas todo sistema ético que se preze deve se basear na razão e necessariamente seguir os princípios da universalidade, generalidade e imparcialidade. Em miúdos: todos os agentes morais devem ser capazes de compreender por que uma determinada ação é certa ou errada, as mesmas regras devem ser aplicadas em situações semelhantes e, o mais importante, deve-se analisar as conseqüências de uma determinada ação do ponto de vista de todos aqueles que são por ela afetados.

Apesar de toda a costumeira conversa fiada sobre a suposta perda de nossa humanidade ao nos igualarmos aos “bichos”, a discussão sobre direitos animais provoca tamanho ultraje por um dos motivos mais comezinhos: a ameaça que ela traz a um dos nossos prazeres mais caros. Um autor americano, Michael Pollan, chega a comparar o vegetarianismo à abstinência sexual. Um exemplo clássico: quando se discute o uso de cobaias para se encontrar a cura dos males que afligem a humanidade, a imensa maioria dos defensores desta prática alega que jamais sacrificaria a vida de animais se houvesse uma opção viável para se chegar ao mesmo resultado nas pesquisas. Mas, a partir do momento em que são informados de que uma dieta isenta de produtos de origem animal pode ser totalmente saudável e segura, o mesmo princípio passa a não valer, pois o estômago começa a interferir no funcionamento do cérebro e começam a pipocar argumentos como o da cadeia alimentar: se o leão come gazelas, por que diabos não podemos comer o nosso bife? Alegamos que temos o direito de usar os animais não-humanos como cobaias pelo fato deles serem supostamente inferiores a nós, mas, quando convém ao nosso paladar, justificamos o fato de os comer igualando-nos a animais carnívoros que não poderiam agir de outro modo. Ou seja, para justificar os nossos prazeres à mesa, não há problema algum em sermos contraditórios e em assumirmos a nossa própria animalidade. Neste caso, a moral não passa de um subterfúgio que os vitoriosos criam para universalizar a posição que lhes convém. Sem contar que este tipo de comparação ressuscita a velha falácia naturalística, ou seja, a de que tudo aquilo que é natural seria moralmente correto. Se seguíssemos este preceito à risca, deveríamos, como bons mamíferos, legitimar a supremacia dos machos sobre as fêmeas, que é a regra entre esta classe de animais.

Toda a discussão sobre direitos animais pode ser resumida em uma única pergunta: que característica moralmente relevante todos os seres humanos possuem para ter o direito de não serem tratados como objetos que nenhum outro animal possui? É bom observar que inteligência, raciocínio lógico, domínio da linguagem simbólica, compreensão do significado de justiça e de direitos e grau de afeição que despertam não são medidas de direitos básicos. Todos os seres humanos têm o mesmo direito em igual medida de não serem usados como objetos independentemente de terem ou não estes atributos. Capacidade de fazer escolhas morais nunca foi um pré-requisito para a posse de direitos básicos.

Na verdade, este direito de não sermos usados como objetos se deve única e exclusivamente ao fato de que somos sencientes, ou seja, somos capazes de ter sensações e, conseqüentemente, temos consciência daquilo que acontece com os nossos próprios corpos e do que se passa à nossa volta. Em suma, nos importamos com aquilo que acontece conosco. Mesmo os comatosos podem apresentar um grau de consciência mínima. Também devemos respeitar aqueles que se encontram em estado vegetativo persistente, pois futuramente pode haver um meio de se reverter o seu quadro. Mas no caso de morte cerebral, o ser humano em questão deixa de ser alguém e os seus órgãos poderão ser usados para salvar a vida de outras pessoas.

Como boa parte dos outros animais também é senciente, a única razão pela qual tratamos casos semelhantes de modo diferente se deve exclusivamente ao fato de que eles não pertencem à nossa espécie. Ou seja, discriminamos indivíduos que têm exatamente os mesmos interesses básicos do que nós em virtude de uma característica biológica irrelevante para este caso. Por esta razão, a analogia do especismo com o racismo e com o sexismo é perfeitamente válida. Isso de modo algum significa que quem é especista necessariamente é um racista ou um sexista em potencial. Uma pessoa pode ser racista e, ao mesmo tempo, ser a favor da igualdade dos sexos.

É claro que os outros animais jamais poderão pertencer verdadeiramente à nossa sociedade, apesar de muitos viverem entre nós em uma situação de sujeição e dependência. Não podemos nos sentar para negociar com os ratos para que não se proliferem a torto e a direito pelas nossas cidades nem com os gafanhotos para que não ataquem as nossas lavouras. Nestes casos, existe um conflito de interesses básicos, pois estes animais estão lutando por sua sobrevivência tanto quanto nós. Se eles ainda representarem uma ameaça mesmo depois de tomadas todas as devidas medidas sanitárias e ecológicas de controle, poderemos tomar as medidas que forem necessárias para a preservação de nossa saúde e de nossos alimentos, sempre procurando causar o menor dano possível a estes animais, pois todo ser senciente deve ser respeitado na medida do possível. Também não podemos persuadir aquele Pit Bull da esquina, que é fruto da eugenia que perpetramos com as outras espécies, a não nos atacar. Neste caso, temos todo o direito de tomar as medidas que forem estritamente necessárias para nos livrarmos de seu ataque iminente. A legítima defesa é um princípio que aplicamos sem o viés especista, pois é igualmente válida se um leão ou um outro ser humano nos atacar.

Para finalizar, a afirmação de que o uso dos outros animais como objetos é chancelado pela atual legislação é irrelevante em uma discussão sobre se este uso é eticamente condenável ou não. Direitos legais não são sinônimos de direitos morais. Não podemos nos esquecer de que a escravidão já foi perfeitamente legal e de que colaborar com a fuga de escravos alheios era crime. A única razão pela qual a “estrada de ferro subterrânea” foi bem sucedida nos Estados Unidos de meados do século XIX foi a de que boa parte da população dos estados nortistas abominava a escravidão. O que está longe de acontecer em nossa atual sociedade com relação ao uso de indivíduos sencientes não-humanos como objetos, que é visto como a coisa mais normal do mundo. O nosso trabalho deve ser necessariamente educacional e não-violento, tanto por motivos estratégicos quanto por razões de ordem moral, pois os seres humanos que colaboram e se beneficiam com esta exploração não deixam de ser animais e, na maior parte das vezes, não fazem isso por mal, apesar do grau inimaginável de violência que é deliberadamente impingido a bilhões de animais. Devemos ser coerentes e aplicar em toda a ocasião o princípio de que os fins não justificam os meios. Afinal, quase ninguém foi criado como vegano desde o nascimento. No futuro, esperamos que isso seja a norma ao invés da exceção.

*Prezados leitores. A partir dessa semana, teremos um escritor convidado, Cláudio de Godoy, que irá postar junto comigo, neste espaço, em semanas alternadas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Sacralização da Vida

Retângulo áureo...


Freqüentemente os defensores dos direitos não só dos animais, mas também dos seres humanos, são confrontados com críticas que têm pouco efeito prático, mas que pretendem-se de cunho desmoralizante: desqualificar o postulante de um determinado princípio, ou desqualificar o princípio em si. Já vimos alguns exemplos desse tipo. Em geral, essas críticas partem do pressuposto, como vimos aqui, de que o princípio é falso, ou hipócrita, ou utópico, e portanto não pode nem deve ser adotado como regra geral.

Sendo que o princípio básico dos adeptos dos direitos fundamentais (humanos e não-humanos) é, necessariamente, a VIDA, é comum, e até compreensível, que os relativistas e hegemonistas, cedo ou tarde, venham com essa afirmação: "que a vida não é um valor que possa ser generalizado". Para os antropocentristas, logicamente, a questão recai (novamente) na questão da racionalidade: apenas o ser humano (supostamente) valoriza a sua vida e deve, portanto, tê-la preservada. Para os críticos da noção de direitos humanos, em geral relativistas, a coisa fica ainda pior: nem sequer para o ser humano a vida é um valor generalizável. Essa fórmula geralmente vem acompanhada de um conceito, o qual os abolicionistas e humanistas devem todos ter ouvido ad nauseam (apesar de seus críticos se julgarem tão alternativos): o da "Sacralização da vida".

...proporção encontrada em diversas formas na natureza...


O que significa, e o que há por trás desse conceito? A idéia de "sacralização" significa que há algo sagrado, intocável. Que, para os abolicionistas (em relação aos animais não-humanos) e para os humanistas (em relação aos seres humanos) seria a vida. Por trás dele, há uma idéia de que a adoção desses princípios não passa de uma extrapolação, para o mundo leigo, de uma visão religiosa, e portanto, igualmente deslocada do mundo material e impossível de ser abrangida por ele em sua totalidade (uma vez que é impossível unificar toda a humanidade numa só religião), além de impositiva de uma moral particular. De modo geral, essa "sacralização" é identificada com o Cristianismo, para o qual, segundo algumas fórmulas, a morte é uma tragédia, evidenciada nos rituais fúnebres. E, a partir daí, um alvo fácil para céticos (em geral "revolucionários") e/ou "realistas" (em geral conservadores), prontos a nos acusar simultaneamente de ingenuidade, idealismo e teocratismo.

Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que não há nenhuma precisão na associação entre Cristianismo e "sacralização da vida" (apesar do mandamento "Não Matarás"). Pelo menos se considerarmos exclusivamente o cristianismo institucionalizado - aquele que construiu estruturas de poder temporal, nos templos e nos palácios. Vejamos o caso do catolicismo. Para estes cristãos, o que era sagrado não era a vida, pelo menos não neste plano físico, mas a VIDA ETERNA. Um acréscimo que faz toda a diferença, pois desloca o fundamental não para trajetória completa do indivíduo, mas para o seu encerramento: o momento da morte. O que conta é, portanto, a salvação, a purificação, materializada no ritual da extrema-unção. Não quer dizer que os atos anteriores não contam - é por isso que existem os mandamentos, e o sacramento da confissão, para expiar os pecados. Mas tudo isso de pouco conta se, no momento final, o fiel negar a Deus. Se, ao contrário, no momento final ele for tomado de sincero arrependimento, sob os auspícios do Senhor, tudo lhe será perdoado, mesmo os mais torpes pecados, e ele ganhará os céus. O resultado dessa perspectiva está longe de ser inofensivo. Vertido em instrumento de poder, o Cristianismo passou a perseguir infiéis, e a purificá-los exatamente pelo recurso a uma "solução final": para o pecador renitente, apenas o sacrifício em nome da fé é redentor. Na Inquisição (o exemplo mais famoso, mas de modo algum o único), o herege ou infiel seria queimado vivo, pois o fogo o purifica dos pecados: perde-se a vida material, mas ganha-se a vida eterna. (Os relatos da conquista da América dão conta de que os índios condenados à morte que concordavam em converter-se ao Cristianismo não eram queimados, mas enforcados: o perdão espiritual não é acompanhado, necessariamente, pelo perdão material - apenas garante uma morte "cristã".)

Em contraste, é sabido que todas as religiões e culturas tratam da questão do direito a vida e têm regras contra o assassinato. Essas regras podem variar, mas o princípio persiste. Isso por uma razão muito simples: se não há interdição do assassinato, a vida em sociedade torna-se impossível.

...inclusive no ser humano...


Claro, alguns defensores de animais - humanos e/ou não-humanos - de fato adotam a idéia de que a vida é "sagrada". Sem haver qualquer demérito nessa perspectiva eivada de religiosidade. No entanto, não deixa de ser instrutivo que a maioria dos defensores de animais que têm essa vinculação transcendental são, em geral, influenciados por certas religiões orientais - Budismo, Hinduísmo, Jainismo - e sua premissa da "não-violência" (Ahimsa). Que, por sua vez, segundo o historiador Rynn Berry, está na própria raiz da difusão do vegetarianismo e dos direitos animais no ocidente. Nada a ver, portanto, com o Cristianismo. Portanto, a "sacralização da vida" promovida pelos defensores dos animais nada tem a ver com uma moral cristã desproporcialmente distorcida e ampliada, pelo menos na maioria esmagadora dos casos. O princípio da não-violência, por sua vez, mesmo que tenha um substrato religioso, não pode ser imediatamente descartado em função disso, sem se avaliar os seus próprios méritos (como é, aliás, com qualquer ideologia, que é o que são, no fundo, todas as religiões).

Restar-nos-ía ainda, entretanto, resolver por que não é tão fácil nos desfazer da "sacralização da vida", mesmo num contexto de relativização de valores e busca egoísta da satisfação, inclusive à expensa de outros indivíduos. Ora, a resposta para isso é muito fácil. Defendemos a vida não porque ela é "sagrada", mas porque ela é o que o indivíduo (humano e não-humano) tem de mais importante, de mais precioso. Pelo simples fato de que se não há vida, não há mais nada para postular. E, uma vez vivo, há que ser LIVRE para poder desfrutar de fato da vida que se possui. Sem Liberdade, a vida é uma dádiva inútil. Qualquer um que alegue se importar com animais (humanos e não-humanos) e, ao mesmo tempo, rejeita o tese da inviolabilidade da vida, está praticando a pior forma de hipocrisia. Não há respeito possível para com um indivíduo quando lhe negamos aquilo que lhe é mais importante: a vida, a liberdade e a integridade. O respeito torna-se um princípio inútil se admitimos "relativizar" as circunstâncias em que ele é aplicado. E isso fica muito claro ao analisarmos as tragédias que decorreram de ideologias políticas que, sob apelo humanistas, colocaram sua utopia acima dos indivíduos.

Seja como for, o respeito à vida e à liberdade são, necessariamente, os pilares de nossa conduta com nossos semelhantes. Independente dos caminhos que alguém vislumbre para alcançar o ideal de uma sociedade justa, este alguém, se alega promover o respeito e a plenitude dos direitos animais (humanos e/ou não-humanos), deve partir destes dois pilares. Pelo menos neste plano físico. E, se existe outro plano, não cabe a ninguém dizer por outrem. E, seja em nome de qualquer ideologia, religiosa ou laica, ninguém pode arrogar-se o direito de decidir sobre a interrupção de vidas que não a sua própria.

...e em suas obras.


* * * * *

PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 29 de Setembro de 2008.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Libertação em Movimento

Hoje gostaria de falar sobre outro aspecto das críticas dos defensores da exploração animal: a suposta impossibilidade de se alcançar a abolição da exploração animal, o irrealismo e o ridículo de nossos objetivos.

Geralmente esse raciocínio se desdobra nos seguintes argumentos:

1. A imensa maioria das pessoas não está disposta a se tornar vegana.

2. O que nós fazemos não passa de ilusão - nunca poderemos alcançar um estágio de abolição porque simplesmente é "impossível" acabar com a exploração animal: ela está em todos os lugares.

3. Sendo impossível, inviável e utópico alcançar a abolição, o mais lógico, o mais prático e mais "coerente" (na visão deles) para os defensores dos animais seria defender medidas de bem-estar: prover conforto e saúde, administrar anestésicos, abater "humanitariamente", etc.

Daí faz-se um adendo para salientar a impressionante convergência de raciocínio entre exploradores e bem-estaristas: a linha de argumentação é praticamente idêntica. A única diferença é que os bem-estaristas substituiriam o "eternamente impossível" pelo "momentaneamente impossível" para, a partir daí, defender absolutamente os mesmos preceitos: se não há como abolir, vamos torná-la menos cruel.

Os "exemplos" da impraticabilidade do veganismo são inúmeros: a carne e outros alimentos de origem animal são essenciais e apreciados pela imensa maioria dos seres humanos; a abolição dos testes em animais impediria o avanço da ciência médica; todas as empresas testam produtos em animais e as que alegam não fazê-lo apenas estão usando de uma estratégia de marketing para atrair um determinado público; os diversos ramos da exploração animal geram renda e emprego e seu abandono resultaria numa catástrofe para a economia e o bem-estar da humanidade; animais domesticados ou mantidos em zoológicos precisam de carne de outros animais abatidos para sobreviver. Conclusão: libertação animal não passa de um delírio de mentes adolescentes, mimadas, rebeldes e doentias.

Daí, claro, podemos passar à realidade dos fatos.

Em primeiro lugar, como já argumentei em parte na postagem "Questão de Coerência" , certo está que muitos aspectos da exploração animal são difíceis, senão impossíveis, de evitar no mundo contemporâneo. É preciso, porém, uma boa dose de ignorância histórica para assumir que necessariamente será assim para sempre (e de cretinismo para supor que a impossibilidade da plenitude neutraliza e desmerece a importância de fazer o máximo possível). A humanidade, suas sociedades, suas tradições, estão em permanente transformação, e uma após a outra as pretensões de imutabilidade se fizeram em pó, a despeito da arrogância dos portadores de diversos impérios, regimes, práticas e ideologias que se supunham eternos. Os veganos contemporâneos são, neste sentido, desbravadores, abrindo caminhos, mostrando novas formas de ver e fazer, certamente incompletos no contexto geral, mas em progresso constante - e eu diria, inclusive, rápido - para viabilizar que, no espaço de algumas gerações, o estilo de vida 100% vegano seja uma realidade ao alcance de boa parte da população humana, ao menos aquela com acesso à educação e informação, e com razoável controle sobre seus meios de vida - seja no espaço urbano, seja no espaço rural. Vejam bem, eu disse "ao alcance", não disse que todas as pessoas nessas condições serão veganas - quando chegarmos no hipotético estágio de universalização do veganismo entre esse grupo social, certamente estaremos em condições de dar um passo adiante para a eliminação total da exploração animal - o que, para dissipar quaisquer dúvidas, sempre afirmo que precisa ocorrer de forma não-violenta, pois de qualquer outra forma será eticamente condenável e incoerente.

Podemos fazer uma refutação ponto a ponto: a carne e outros alimentos de origem animal NÃO são essenciais, e muitos dos que antes tanto os apreciavam foram capazes de racionalmente se dar conta da irracionalidade de infligir sofrimento desnecessário por uma dose de prazer fugaz - além de tudo tão facilmente substituído, pois a culinária vegetariana estrita está longe de restringir-se à salada e ser desprovida de sabor. A abolição dos testes em animais não só não impediria o progresso da ciência, como o estimularia, como qualquer desafio que se interpõe ao espírito criativo e inquisidor do ser humano; além do mais, são grandes as objeções de caráter estritamente científico à vivissecção, contando a luta antivivissecionista com o respaldo de um número ainda restrito, mas respeitável de cientistas. Os testes em animais na indústria JÁ ESTÃO EM FASE DE ABOLIÇÃO e é apenas uma questão de tempo até que sejam totalmente abandonados, quiçá sem mesmo sequer dependermos de legislação para tanto; da mesma forma que a ciência, a economia humana apenas tem a ganhar com a abolição de uma prática ineficiente, concentradora de renda e poluente; o ser humano, inteligente e adaptável como é, certamente encontrará formas de viabilizar-se e reinventar-se; da mesma forma que a tecnologia, a abolição da exploração animal pode tornar-se uma oportunidade para impulsionar uma nova abordagem das relações sócio-econômicas, e - também da mesma forma que a tecnologia - só não o fará se as próprias relações humanas mantiverem-se assimétricas, desiguais, iníquas e injustas. No caso dos animais domesticados ou mantidos em zoológicos, a ciência da nutrição já avançou bastante, e certamente dispomos, hoje, de conhecimento, tecnologia e recursos para desenvolver rações veganas; isso apenas ainda não é feito porque a mentalidade dominante não se questiona sobre as implicações éticas da alimentação de animais domésticos - afinal, eles mal se questionam sobre as implicações éticas da própria alimentação e do próprio estatuto de "animal doméstico", fatores que NECESSARIAMENTE vêm antes de se obter consciência sobre o absurdo moral de matar alguns animais para alimentar outros. Mesmo muitos vegetarianos não fizeram essa transição - alguns acham que é uma "violação da natureza" de certos animais, esquecendo que enclausurá-los também é.

Em suma, à medida que o número de veganos cresce, e eles se tornam mais visíveis, mais unidos e mais ativos, fatalmente as mudanças virão, seja por meio do mercado, seja por meio das mudanças na legislação.

O que nos leva, aliás, ao segundo ponto: as evidências muito atuais dos progressos da luta pela abolição da exploração animal, a despeito da afirmação assoberdada de quem acha que não passa de mero delírio juvenil. Talvez alguém achasse em um tempo remoto que era impossível que negros, índios, estrangeiros ou mulheres pudessem ter os mesmos direitos que homens brancos. Aliás, na Europa querem tirar os direitos mais básicos dos imigrantes, e uma das desculpas é justamente dizer que "não é possível" uma Europa que garanta direitos a todos, prospere e seja pacífica ao mesmo tempo.

Trata-se de uma típica chantagem de exploradores e detentores do poder, portadores da ideologia dominante, tentando afetar psicologicamente os adversários, desqualificá-los e à sua luta. Enquanto isso, nós pressionamos, ganhamos espaço, forçamos o debate, conseguimos pequenas concessões, e num futuro próximo teremos adeptos e poder para emplacar mudanças.

Basta mencionar alguns exemplos. Casos como a proibição de animais em circos e da vivissecção são emblemáticos: quem imaginaria que poderíamos avançar nessa matéria, 50 anos atrás? E ainda assim, o debate avança. Mesmo que não tenhamos vencido, leis antivivissecção foram aprovadas no Rio de Janeiro e Florianópolis, antes de serem desfiguradas e vetadas. O simples fato de estarmos pondo as questões na agenda já indica uma auspiciosa mudança de ventos. A reação dos exploradores também não tardou - como se era de esperar - e os vivisseccionistas criam eventos, mesas redondas, publicam artigos, fazem lobby e canalizam recursos para defender seus interesses, seu meio de vida, sua visão de mundo e seu poder constituído - afinal, esta também é, principalmente, uma disputa por PODER. Estranho seria se não fosse assim! No entanto, a própria reação em si já significa uma vitória para nós: eles que antes tinham sua posição legitimada a priori, agora têm que se esforçar em convencer a sociedade de que seu ofício é legítimo, e que não pode ser de outro modo. Claro está que a pressão irá aumentar nos próximos anos, inclusive de dentro das universidades: o uso de animais vivos já está sendo abolido no ensino, e como mencionei, existem cientistas de respeito que se opõem ao modelo animal também na pesquisa. Também entre os estudantes o questionamento ético do uso de animais é crescente. Nesse mesmo perído, a União Européia já proibiu testes da indústria de cosméticos a partir de 2009, e na UE e América do Norte já existem selos que atestam que determinados produtos não foram testados em animais - um tipo de certificação que estamos tentando implementar aqui no Brasil.

E é questão de tempo até chegarmos na pecuária. Esta semana já tivemos, num veículo de comunicação de massas de grande circulação, pela primeira vez, uma matéria tratando da controvérsia do abate humanitário e o embate entre abolicionistas e bem-estaristas:

http://vista-se.com.br/arquivos/revistafolha.htm

Pode levar anos, e deverá levar MUITOS anos, mas chegaremos ao ponto de veicularmos seriamente nossa oposição à criação de animais para a alimentação e nos fazermos ouvir. Quando isto acontecer, os pecuaristas estarão na defensiva, como estão hoje os vivisseccionistas.

Claro, foram apenas pequenos passos dados até agora. E absolutamente não está garantido que seremos vitoriosos, nem quando. A história é feita de progressos e retrocessos, contradições e conflitos. Mas é com pequenos passos que se começa uma longa jornada, e eu acredito que a história humana tende a caminhar para sistemas mais livres: sempre que surge a tirania, onde quer que se imponha, ela sempre é desafiada, e acaba sucumbindo. A liberdade e sua busca são condições sine qua non da existência. A causa abolicionista se move, e progride: lenta, mas continuamente.

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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 16 de Setembro de 2008

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Abatedor (Adaptação)



Hoje vou postar uma adaptação de um conto de Isaac Bashevis Singer. Não fiz alterações no texto, apenas condensei-o para caber numa postagem.

Isaac Bashevis Singer (1902-1991) foi um judeu polonês, filho de rabino, que emigrou para os Estados Unidos em 1935, fugindo do anti-semitismo. Consagrou-se como contista. Escrevia em iídiche, idioma dos judeus da Europa central que combina elementos de hebraico, alemão e idiomas eslavos. Foi laureado com o Nobel de Literatura em 1978 e é considerado um dos maiores escritores de tradição judaica.

Bashevis Singer era também um adepto e entusiasta do vegetarianismo, que definiu como "a questão moral de nosso tempo".

Foi dele - um judeu - a famosa frase: "Em seu comportamento com os animais, todos os homens são nazistas".

A íntegra do conto pode ser encontrada na coletânea "47 Contos de Isaac Bashevis Singer", da Companhia das Letras.

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O Abatedor

Isaac Bashevis Singer

Yoineh Meir devia ter sido o rabino de Kolomir. Seu pai e seu avô tinham ambos sentado na cadeira rabínica de Kolomir. Porém, os seguidores da corte de Kuzmir tinham assumido uma teimosa posição: dessa vez não iam permitir que um hassidista de Trisk fosse rabino da cidade. Subornaram um funcionário distrital e mandaram uma petição ao governador. Depois de demorada contenta, os hassidistas de Kuzmir finalmente conseguiram o que queriam e instalaram seu próprio rabino. Para não deixar Yoineh Meir sem uma fonte de rendimentos, nomearam-no abatedor ritual da cidade.

Quando Yoineh Meir soube disso, ficou ainda mais pálido que o normal. Protestou que abater animais não era coisa para ele. Que tinha o coração mole; que não suportava a visão de sangue. Mas todo mundo se juntou para convencê-lo: os líderes da comunidade; os membros da sinagoga de Trisk; seu sogro, Reb Getz Frampoler; e Reitze Doshe, sua esposa. O novo rabino, Reb Sholem Levi Halberstam, também insistiu com ele para aceitar. Reb Sholem Levi, neto do rabino de Sondz, estava incomodado com o pecado de tirar o meio de vida de outrem, não queria que o homem mais novo ficasse sem sustento. O rabino de Trisk, Reb Yakov Leibele, escreveu uma carta para Yoineh Meir dizendo que o homem não pode ser mais compassivo que o Todo-Poderoso, fonte de toda compaixão. Quando se mata um animal com uma faca pura e com piedade, libera-se a alma que nele reside. Pois é bem sabido que as almas dos santos muitas vezes transmigram para os corpos das vacas, aves e peixes para se penitenciar de alguma ofensa.

Depois da carta do rabino, Yoineh Meir cedeu. Tinha sido ordenado muito tempo antes. Então se pôs a estudar as leis do abate conforme explicadas no Natureza do boi, no Shulchan Aruch e nos Comentários. O primeiro parágrafo do Natureza do boi dizia que o abatedor ritual tem de ser um homem temente a Deus, e Yoineh Meir dedicou-se à Lei com mais zelo do que nunca.

Yoineh Meir, pequeno, magro, rosto pálido, uma rala barba amarela na do queixo, nariz adunco, boca caída e olhos amarelos apavorados muito juntos, era famoso por sua religiosidade. Quando rezava, usava três pares de filactérios : os de Rashi, os do rabino Tam e os do rabino Sherira Gaon. Logo depois de completar sua estada em casa do sogro, começara a respeitar todas as datas de jejum e a acordar para os serviços da meia-noite.

Sua esposa, Reitze Doshe, reclamava sempre que Yoineh Meir não era deste mundo. Reclamava com a mãe que ele nunca lhe falava uma palavra e que nunca prestava atenção nela, nem em seus dias puros. Só ia a ela nas noites depois que ela visitava o banho ritual, uma vez por mês. Disse que ele não lembrava os nomes das próprias filhas.

Depois que concordou em ser o abatedor ritual, Yoineh Meir impôs a si mesmo novos rigores. Comia cada vez menos. Quase parou de falar. Quando um mendigo vinha à porta, Yoineh Meir corria a lhe dar boas-vindas e entregava-lhe seu último groschen . A verdade é que transformar-se em abatedor mergulhou Yoineh Meir na melancolia, porém ele não ousava opor-se à vontade rabino. Era para ser assim, Yoineh Meir dizia a si mesmo; era seu destino provocar tormento e sofrer tormento. E só o Céu sabia o quanto Yoineh Meir sofria.

Yoineh Meir temia que pudesse desmaiar ao abater sua primeira ave, que sua mão não ficasse firme. Ao mesmo tempo, em algum lugar do seu coração, esperava cometer um erro. Isso o liberaria da ordem do rabino. Porém, tudo correu de acordo com as regras.

Muitas vezes por dia, Yoineh Meir repetia para si mesmo as palavras do rabino: “Um homem não pode ser mais compassivo que a Fonte de toda compaixão”. A Torá diz: “Deves matar teu rebanho e tua manada conforme te ordenei”. No monte Sinai, a Moisés foram ensinados os modos de matar e abrir o animal em busca de impurezas. É tudo um mistério de mistérios: vida, morte, homem, animal. Os que não são abatidos morrem de qualquer forma, de doenças variadas, muitas vezes sofrendo semanas ou meses. Na floresta, as feras se devoram umas às outras. Nos mares, peixe engole peixe. A casa dos pobres de Kolomir está cheia de aleijados e paralíticos que ali ficam anos, se sujando. Nenhum homem escapa às tristezas deste mundo.

E, no entanto, Yoineh Meir não encontrava consolação. Cada tremor da ave abatida provocava em Yoineh Meir um igual tremor nas entranhas. A morte de cada animal, grande ou pequeno, causava-lhe tanta dor quanto se estivesse cortando sua própria garganta. De todos os castigos que podiam se abater sobre ele, matar era o pior.

*****

Mal haviam se passado três meses desde que Yoineh Meir se tornara abatedor, porém o tempo parecia esticar-se, sem fim. Sentia que estava mergulhado em sangue e linfa. Seus ouvidos eram atacados pelo cacarejar de galinhas, pelo canto dos galos, pelo grasnar dos gansos, pelo mugir dos bois, pelo bramir e blaterar de novilhas e cabritos; asas adejando, garras batendo o chão. Os corpos se recusavam a aceitar qualquer justificativa ou desculpa, cada corpo resistia a seu jeito, tentava escapar, e parecia discutir com o Criador até o último alento.

E a cabeça de Yoineh Meir se enchia de questões. Verdadeiramente, para criar o mundo, Aquele que é Infinito teve de encolher Sua luz; não podia haver livre-arbítrio sem dor. Mas uma vez que os animais não eram dotados de livre-arbítrio, por que tinham de sofrer? Yoineh Meir observava, tremia, enquanto os açougueiros esquartejavam as vacas com seus machados e pelavam as carcaças antes de elas terem exalado o último suspiro. As mulheres depenavam as galinhas ainda vivas.

É costume o abatedor receber o baço e o bucho de toda vaca. A casa de Yoineh Meir ficou cheia de carne. Reitze Doshe fazia sopas em panelas grandes como caldeiras. Na grande cozinha havia um constante frenesi de cozinhar, grelhar, fritar, assar, mexer e cozer. Reitze Doshe estava grávida de novo e sua barriga projetava em ponta. Grande e atarracada, tinha cinco irmãs, todas tão volumosas quanto ela. As irmãs vinham com os filhos. Todo dia, a mãe de Reitze Doshe trazia novas pastelarias e quitutes feitos por ela. Uma mulher não devia fizer ouvir sua voz, mas a criada de Reitze Doshe, filha de um aguadeiro, cantava, andava por todo lado descalça, com os cabelos soltos, e ria tão alto que o barulho ressoava por todos os quartos.

Yoineh Meir queria escapar do mundo material, mas o mundo material o perseguia. O cheiro da casa de abate não saía de suas narinas. Tentava esquecer-se na Torá, mas descobriu que a própria Torá estava cheia de assuntos terrenos. Interessou-se pela Cabala, embora soubesse que nenhum homem deve mergulhar nos mistérios antes de chegar à idade de quarenta anos. Mesmo assim, continuava a folhear o Tratado do hassidismo, O pomar, O livro da Criação, e A árvore da vida. Lá, nas altas esferas, não havia morte, nem abate, nem dor, nem estômagos e intestinos, nem corações, pulmões ou fígados, nem membranas, nem impurezas.

Nessa noite em particular, Yoineh Meir foi à janela e olhou o céu. A lua espalhava sua radiação em torno dele. As estrelas brilhavam e cintilavam, cada uma com seu segredo celestial. Em algum lugar acima do Mundo dos Atos, acima das constelações, Anjos voavam, e Serafins e Rodas Sagradas e Animais sagrados. No Paraíso, os mistérios da Torá eram revelados às almas. Todo zaddick sagrado herdava trezentos e dez mundos e tecia coroas para a Divina Presença. Quanto mais perto do Trono de Glória, mais brilhante a luz, mais pura a radiação, menos numerosas as hostes profanas.

Yoineh Meir sabia que o homem não pode pedir pela morte, mas no de si mesmo ansiava pelo fim. Tinha desenvolvido uma repugnância por tudo o que tinha a ver com o corpo. Não conseguia nem forçar-se a ir ao banho ritual com os outros homens. Debaixo de toda pele via sangue. Cada pescoço fazia Yoineh Meir se lembrar da faca. Seres humanos, como animais, tinham lombo, veias, entranhas, nádegas. Um corte com a faca e esses sólidos chefes de família tombariam como bois. Como diz o Talmude, tudo o que se destina a ser queimado já está queimado. Se o fim do homem é a corrupção, os vermes, o fedor, então ele nada mais era que um pedaço de carne pútrida já de início.

Yoineh Meir entendia agora por que os sábios de antigamente comparavam o corpo a uma jaula, uma prisão onde a alma está cativa, ansiando pelo dia da libertação. Só agora entendia verdadeiramente o sentido das palavras do Talmude: “Muito bem, isto é morte”. Porém o homem estava proibido de escapar de sua prisão. Tem de esperar que o carcereiro remova as correntes, abra o portão.

Yoineh Meir voltou para a cama. A vida inteira havia dormido em uma cama de penas, debaixo de um acolchoado de penas, a cabeça repousando sobre um travesseiro; agora, de repente, dava-se conta de que estava deitado sobre penas e penugem arrancada de aves. Na outra cama, junto à de Yoineh Meir, Reitze Doshe roncava. De quando em quando, saía um assobio de suas narinas e formava-se uma bolha em seus lábios. As filhas de Yoineh Meir iam ao penico, os pés nus correndo pelo chão. Dormiam juntas e às vezes cochichavam e riam metade da noite.

Yoineh Meir havia desejado filhos que estudassem a Torá, mas Reitze Doshe produzia menina após menina. Enquanto eram pequenas, Yoineh Meir de vez em quando lhes beliscava a bochecha. Sempre que comparecia a uma circuncisão, trazia-lhes um pedaço de bolo. Às vezes, até beijava na cabeça uma das menores. Mas agora estavam crescidas. Pareciam ter puxado à mãe. Tinham se expandido em largura. Reitze Doshe reclamava que comiam muito e estavam ficando gordas. Roubavam lambiscos dos potes. A mais velha, Bashe, já recebera proposta de casamento. Num momento, as meninas brigavam e se insultavam, no momento seguinte uma penteava o cabelo da outra e fazia tranças. Estavam sempre matraqueando sobre vestidos, sapatos, meias, paletós, calcinhas. Choravam e riam. Catavam piolhos, brigavam, lavavam-se, beijavam-se.

Quando Yoineh Meir tentava ralhar com elas, Reitze Doshe gritava: “Não se meta! Deixe as meninas sossegadas!”. Ou ralhava: “Melhor seria você cuidar que suas filhas não saíssem por aí descalças e nuas!”.

“Por que precisavam de tanta coisa? Por que era preciso vestir e adornar tanto o corpo?”, Yoineh Meir pensava consigo mesmo.

Antes de ser abatedor, raramente estava em casa e mal sabia o que acontecia. Mas agora começara a ficar em casa e via o que elas estavam fazendo. As meninas corriam para apanhar frutinhas e cogumelos; juntavam-se às filhas das casas comuns. Traziam para casa cestos de gravetos secos. Reitze Doshe preparava geléia. Costureiras vinham fazer provas. Sapateiros mediam os pés das mulheres. Reitze Doshe e a mãe discutiam por causa do enxoval de Bashe. Yoineh Meir ouvia falar de um vestido de seda, um vestido de veludo, toda sorte de saias, mantos, casacos de pele.

Agora que ficava acordado, essas palavras todas ressoavam em seus ouvidos. Elas rolavam em luxos porque ele, Yoineh Meir, tinha começado a ganhar dinheiro. Em algum lugar no útero de Reitze Doshe, uma nova criança estava crescendo, mas Yoineh Meir sentia claramente que seria outra menina. “Bom, é preciso receber bem tudo o que o Céu mandar”, aconselhava a si mesmo.

Tinha se coberto, mas agora estava quente demais. O travesseiro sob a cabeça ficara estranhamente duro, como se houvesse uma pedra entre as penas. Yoineh Meir era ele próprio um corpo: pés, barriga, peito, cotovelos. Sentiu uma pontada nas entranhas. A boca seca.

Yoineh Meir sentou-se. “Pai do Céu, não consigo respirar!”

II.

Elul é um mês de arrependimento. Em anos passados, Elul trazia uma sensação de exaltada serenidade. Yoineh Meir adorava as brisas frescas que vinham da floresta e dos campos colhidos. Ficava olhando longo tempo o céu azul-pálido com as nuvens esgarçadas que lembravam o tecido em que eram embrulhados os limões para a Festa do Tabernáculo . No ar voejavam fibras. Nas árvores, as folhas ficavam amarelo-açafrão. No trinar dos passarinhos ouvia a melancolia dos Dias Solenes, quando o homem faz uma avaliação de sua alma.

Mas, para o abatedor, Elul era outra coisa muito diferente. Muitos animais eram abatidos para o ano-novo. Antes do Dia da Reconciliação, todo mundo oferecia uma ave sacrificial. Em cada pátio, galos cantavam e galinhas cacarejavam, e todos tinham de ser mortos. Então chegava a Festa dos Caldos, o Dia dos Gravetos de Salgueiro, a Festa de Azereth, o Dia do Regozijo com a Lei, o shabat do Gênesis. Cada feriado trazia sua própria mortandade. Milhões de aves e gado agora vivos estavam condenados a ser mortos.

Yoineh Meir não dormia mais de noite. Se cochilava, era imediatamente assolado por pesadelos. Vacas assumiam forma humana, com barbas e cachos laterais e solidéus em cima dos chifres. Yoineh Meir estava matando uma vitela e ela se transformava em uma moça. O pescoço latejava e ela implorava ser poupada. Corria para a casa de estudos e salpicava o chão com seu sangue. Ele chegou a sonhar que estava matando Reitze Doshe no lugar de uma ovelha.

Em um de seus pesadelos, ouviu uma voz humana saindo de um cabrito abatido. O cabrito, com a garganta cortada, saltou sobre Yoineh Meir e tentou chifrá-lo, xingando em hebraico e aramaico, cuspindo e espumando em cima dele. Yoineh Meir acordou suando. Um galo cantou como um sino. Outros responderam, como uma congregação respondendo ao cantor. Para Yoineh Meir pareceu que as aves estavam gritando perguntas, protestando, lamentando em coro o infortúnio que pairava sobre elas.

Yoineh Meir não conseguia descansar. Sentou-se na cama, agarrou os cachos com as duas mãos e oscilou o corpo.

Reitze Doshe acordou. “O que foi?”

“Nada, nada.”

“Por que está balançando assim?”

“Me deixe.”

“Está me assustando!”

Depois de algum tempo, Reitze Doshe começou a roncar de novo. Yoineh Meir saiu da cama, lavou as mãos e se vestiu. Queria colocar cinza na testa e recitar a oração da meia-noite, mas seus lábios recusaram-se a pronunciar as palavras. Como podia lamentar a destruição do Templo quando uma carnificina estava sendo preparada ali em Kolomir e ele, Yoineh Meir, era Tito, era Nabucodonosor!?

O ar da casa estava sufocante. Cheirava a suor, gordura, roupa de baixo suja, urina. Uma de suas filhas resmungou alguma coisa no sono, outra gemeu. As camas rangeram. Do armário veio um farfalhar. Na gaiola debaixo do fogão, havia aves que Reitze Doshe tinha prendido para o Dia da Reconciliação. Yoineh Meir ouviu o raspar de um rato, o cricrilar de um grilo. Pareceu-lhe que conseguia ouvir os vermes cavando no teto e no soalho. Inúmeras criaturas cercavam o homem, cada uma em sua própria natureza, cada uma clamando ao Criador.

Yoineh Meir saiu para o quintal. Ali tudo estava fresco e frio. Havia sereno. No céu, as estrelas da meia-noite cintilavam. Yoineh Meir respirou fundo. Andou pela grama molhada, entre as folhas e os arbustos. Suas meias ficaram molhadas acima do calçado. Chegou a uma árvore e parou. Parecia haver alguns ninhos nos galhos. Ouviu o piar dos filhotes despertados. Coaxaram sapos no brejo além da montanha. “Será que não dormem nunca, esses sapos?”, Yoineh Meir perguntou a si mesmo. “Têm voz de homem.”

Desde que Yoineh Meir começara a abater, seus pensamentos eram obcecados por criaturas vivas. Lutava com todo tipo de pergunta. De onde vinham as moscas? Nasciam do ventre da mãe ou de dentro de ovos? Se todas as moscas morriam no inverno, de onde vinham as novas no verão? E a coruja que fizera o ninho debaixo do teto da sinagoga, o que fazia quando vinha a neve? Ficava lá? Ou voava para países mais quentes? E como podia qualquer coisa viver no gelo que queimava, quando mal era possível esquentar-se debaixo do cobertor?

Dentro de Yoineh Meir, cresceu um amor desconhecido por tudo o que rasteja e voa, procria e enxameia. Até pelos camundongos. Era culpa deles serem ratos? Que mal faz um camundongo? Tudo o que ele quer é uma casca de pão ou um pedaço de queijo. Por que o gato é tão inimigo dele?

Yoineh Meir balançava para frente e para trás no escuro. O rabino pode ter razão. O homem não pode e não deve ter mais compaixão do que o Mestre do universo. Ele, porém, Yoineh Meir, estava doente de pena. Como se pode rezar pela vida no ano que vem, ou por um registro favorável no Céu, quando se está roubando a outros o alento da vida?

Yoineh Meir achava que nem o próprio Messias podia redimir o mundo enquanto se praticasse injustiça contra os animais. O certo era que tudo pudesse renascer dos mortos: cada bezerro, peixe, mosquito, borboleta. Até no verme que rasteja na terra fulgura uma centelha divina. Quando se abate uma criatura, abate-se Deus...

“Ai de mim, estou perdendo a cabeça!”, murmurou Yoineh Meir.

Uma semana antes do Ano-Novo, houve um aumento nos abates. O dia inteiro Yoineh Meir passava ao lado de uma fossa abatendo galinhas, galo gansos, patos. Mulheres empurravam, discutiam, tentavam chegar primeiro ao abatedor. Outras faziam piadas, riam, brincavam; Voavam penas, o pátio cheio de grasnidos, de tagarelice, do canto dos galos. De vez em quando, uma ave gritava como um ser humano.

Yoineh Meir estava tomado por um aperto de dor. Até esse dia, ainda esperava que fosse se acostumar com o abate. Mas agora sabia que mesmo que continuasse durante cem anos seu sofrimento não cessaria. Seus joelhos tremiam. Sentia a barriga distendida. A boca cheia de fluidos amargos. Reitze Doshe e suas irmãs também estavam no pátio, conversando com as mulheres, desejando a cada uma um ano-novo abençoado, e formulando os piedosos votos de se reencontrarem no ano seguinte.

Yoineh Meir temeu não estar mais abatendo de acordo com a Lei. Num momento, um negror flutuava diante de seus olhos; no momento seguinte, tudo ficava verde-dourado. Testava constantemente a lâmina da faca na unha do indicador para ter certeza de que ela não estava cega. Tinha de ir urinar a cada quinze minutos. Mosquitos o picavam. Corvos crocitavam para ele entre os galhos.

Lá ficou até o pôr-do-sol, e o fosso se encheu de sangue.

Depois das preces da noite, Reitze Doshe serviu para Yoineh Meir sopa de trigo sarraceno com assado de panela. Mas embora não tivesse tocado em comida desde a manhã, não conseguiu comer. Sentiu a garganta fechada, tinha um pelote no esôfago e mal conseguiu engolir o primeiro bocado. Recitou o Shemá do rabino Isaac Luria, fez sua confissão e bateu no peito como um homem que está mortalmente doente.

Yoineh Meir pensou que não ia conseguir dormir essa noite, mas seus olhos se fecharam assim que tocou a cabeça no travesseiro e recitou a última bênção antes de adormecer. Pareceu-lhe que estava examinando uma vaca abatida em busca de impurezas, abrindo sua barriga, arrancando os pulmões e soprando dentro deles. O que queria dizer aquilo? Porque isso em geral era trabalho do açougueiro. Os pulmões foram ficando maiores e maiores; cobriram a mesa inteira e incharam para cima até o teto. Yoineh Meir parou de soprar, mas os lóbulos continuaram se expandindo. O lóbulo menor, que é chamado de “ladrão”, sacudiu e oscilou, como se quisesse escapar. De repente, um assobio, uma tosse, um grunhido de lamentação escapou da traquéia. Um dybbuk começou a falar, gritar, cantar, a derramar uma torrente de versos, citações do Talmude, passagens do Zohar . Os pulmões subiram e voaram, batendo como asas. Yoineh Meir queria escapar, mas a porta estava bloqueada por um touro negro de olhos vermelhos e chifres pontudos. O touro bufou e abriu uma bocarra cheia de dentes compridos.

Yoineh Meir estremeceu e acordou. Estava com o corpo banhado em suor. A cabeça inchada, cheia de areia. Os pés pousados na enxerga de palha, inertes com pau. Fez um esforço e sentou-se. Vestiu o robe e saiu. A noite estava pesada e impenetrável, grossa com a escuridão de hora antes do amanhecer. De tempo em tempo, uma lufada de ar vinha de algum lugar, como o suspiro de alguém invisível.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha, como se alguém tivesse passado uma pena por ela. Algo dentro dele chorava e ria. “Bom, e daí que o rabino disse isso?”, falou a si mesmo. “E se o Deus Todo-Poderoso ordenou, o que é que tem? Posso passar sem recompensas no próximo mundo! Não quero nenhum Paraíso, nenhum Leviatã, nenhum Touro Selvagem! Eles que me deitem numa cama de pregos. Que me joguem no Vazio da Funda. Não quero nenhum dos Seus favores, Deus! Não tenho mais medo do Seu Juízo! Sou um traidor de Israel, um transgressor por vontade própria!” Yoineh Meir gritou: “Tenho mais compaixão que o Deus Todo-Poderoso, mais, mais! Ele é um Deus cruel, um Homem de Guerra, um Deus de Vingança. A Ele não sirvo! O mundo está abandonado!”. Yoineh Meir riu, mas as lágrimas correram por suas faces como gotas ferventes.

Yoineh Meir foi até a despensa onde guardava as facas, a pedra de amolar, a faca de circuncisão. Recolheu tudo e jogou na fossa externa. Sabia que estava blasfemando, que estava profanando instrumentos sagrados, que estava louco, mas não queria mais ser são.

Saiu e começou a caminhar para o rio, para a ponte, para a floresta. A estola de oração e os filactérios? Não precisava mais deles! O pergaminho era feito de couro de vaca. As caixas dos filactérios eram feitas de couro de vitela. A própria Torá era feita de pele de animal. “Pai do Céu, sois um matador!”, gritou uma voz dentro de Yoineh Meir. “Sois um matador e o Anjo da Morte! O mundo inteiro é um matadouro!”

Um dos sapatos saiu do pé de Yoineh Meir, mas ele deixou ficar para trás, andando só com um pé de sapato e uma meia. Começou a gritar, a barrar, cantar. Estou enlouquecendo a mim mesmo, pensou. Mas mesmo isso era sinal de loucura...

Tinha aberto uma porta em sua mente, e a loucura entrou, inundando tudo. De momento a momento, Yoineh Meir ficava mais rebelde, Jogou fora o solidéu, agarrou as franjas de oração e arrancou-as, rasgou pedaços do colete. Estava possuído por uma força, pela inquietação de alguém que se livrou de todas as cargas.

Cães o perseguiam, latindo, mas ele os afastou. Portas se abriam. Homens corriam para fora descalços, com penas grudadas nos solidéus. Mulheres saíam de combinação e touca de dormir. Todos gritavam, tentando impedir sua passagem, mas Yoineh Meir escapou de todos.

O céu ficou vermelho feito sangue, e um crânio redondo emergiu do mar de sangue como do útero de uma mulher ao dar à luz.

Alguém tinha ido contar aos açougueiros que Yoineh Meir enlouquecera. Eles vieram correndo com varas e cordas, mas Yoineh Meir já estava em cima da ponte, indo depressa para os campos colhidos. Corria e vomitava. Caiu e levantou, machucado pela grama. Pastores que levam os cavalos para pastar de noite caçoaram dele e jogaram esterco de cavalo em cima dele. As vacas no pasto correram atrás dele. Sinos tocaram como num incêndio.

Yoineh Meir ouviu gritos, berros, pés correndo. A terra começou a descer e Yoineh Meir rolou encosta abaixo. Chegou à floresta, saltou correndo tufos de musgo, pedras, ribeirões. Yoineh Meir sabia a verdade: aquilo não era o rio à sua frente; era um charco de sangue. Corria sangue do sol, manchando o tronco das árvores. Dos galhos pendiam intestinos, figados, rins. Os quartos dianteiros de animais se punham em pé e o salpicavam de bile e lodo. Yoineh Meir não podia escapar. Miríades de vacas e aves o cercavam, prontas para se vingar de cada corte, cada ferida, cada moela aberta, cada pena arrancada. Com os pescoços sangrando, todas entoavam: “Todos podem matar e toda matança é permitida”.

Yoineh Meir cau num choro que ecoou pela floresta em muitas vozes. Levantou o punho ao céu: “Demônio! Assassino! Fera devoradora!”.

***

Durante dois dias os açougueiros procuraram por ele, mas não o encontraram. Então, Zeivel, que era dono do moinho, chegou à cidade com a notícia de que o corpo de Yoineh Meir havia aparecido no rio, perto da represa. Tinha se afogado.

Os membros da Sociedade Funerária foram imediatamente buscar o corpo. Havia muitas testemunhas de que Yoineh Meir tinha se comportado como louco, e o rabino determinou que o falecido não era um suicida. O corpo do morto foi lavado e sepultado perto dos túmulos de seu pai e sua avó. O próprio rabino fez a apologia.

Como era a estação de festas e havia o perigo de Kolomir ficar sem carne, a comunidade despachou depressa dois mensageiros para trazer um novo abatedor.

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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 1 de Setembro de 2008