quinta-feira, 14 de maio de 2009

Da Autoconsciência e da Senciência

Texto publicado em duas partes em abril de 2009, no site da ANDA

OBS: Partes desse texto foram baseadas nas palestras de Peter Singer e Gary Francione no I Congresso Internacional de Bioética e Direito Animal, proferidas no dia 9 de outubro de 2008, na cidade de Salvador, Bahia.

Que animais sentem dor e são dotados, em diferentes graus, de senciência, é uma questão virtualmente consensual entre estudiosos e debatedores da questão animal. Uma outra questão, bem mais controversa, diz respeito à existência de autoconsciência e o papel que a mesma exerce na atribuição de direitos aos animais. Neste debate evidencia-se como em muitas circunstâncias o bem-estarismo está muito mais próximo do onivorismo que do abolicionismo, e acaba por fim servindo como força auxiliar do onivorismo, ao invés de contribuir, como eles alegam, como uma via realista, reformista, incremental para a abolição da exploração animal.

O conceito de autoconsciência e seu papel chave no debate sobre os direitos animais está ligado, principalmente, ao filósofo australiano Peter Singer, autor do livro Libertação Animal (1975), que se tornou um marco e uma referência para o debate contemporâneo sobre os direitos animais.

Um dos argumentos centrais da filosofia de Singer é que o dano que se causa a um ser é tanto maior quanto maior for seu grau de autoconsciência. Por autoconsciência entende-se a capacidade do indivíduo de perceber-se com um ser existente, consciente de sua individualidade e de sua presença no mundo, portanto capaz de mensurar os danos que sofreria ao ter sua vida extinguida. Para Singer, existem diferentes graus de autoconsciência, e a vida de um animal com elevado grau de autoconsciência tem mais valor quando em confronto com a vida de um animal com grau menor de autoconsciência. Pelo mesmo motivo, Singer alega que a morte em si não é necessariamente um dano à maioria dos animais não-humanos, mas principalmente os sofrimentos infligidos aos animais quando vivos (ele abre exceção a essa regra no caso dos primatas superiores).

Singer advoga que, no tratamento dos animais não-humanos, deve-se aplicar o princípio da igualdade de consideração de interesses, isto é, que interesses iguais devem ser tratados de formas iguais. Porém, se houver conflito de interesses iguais, prevalece o interesse daquele ser dotado de maior autoconsciência. O interesse de um animal não-humano pela vida deve ser considerado na mesma medida que o interesse de um ser humano pela vida, mas não ser equiparado.

Conclui-se daí que:

1. O ser humano tem o direito de usar animais quando os benefícios que ele pode extrair disso superarem os danos causados aos animais não-humanos, no caso de estar na balança os interesses básicos de ambos.

2. Uma morte indolor, pelo sistema ético de Singer, é moralmente aceitável contanto que se tenha observado todos os requisitos para que o animal não-humano tenha tido uma vida plena enquanto ainda vivo.

Por este motivo Singer não advoga publicamente contra a vivissecção e, embora afirme que a criação de animais para abate não se aplica ao item 1 (mas sim a vivissecção), ele defende a adoção de reformas bem-estaristas como meio de preencher os requisitos exigidos pelo item 2. Singer se torna, portanto, o mentor do bem-estarismo contemporâneo e fornece amplos subsídios para a defesa do onivorismo. Os bem-estaristas se comunicam em termos muito parecidos, enquanto os onívoros simplesmente se contentam em defender as medidas de bem-estar sem levar em consideração o princípio singeriano da igualdade de consideração de interesses: jamais o interesse do ser humano pelo bife prevalece, dentro desse princípio, sobre o interesse do boi pela vida.

Embora aparentemente muito lógica, e até sedutora, a filosofia de Singer apresenta muitas e perigosas lacunas. Ao dar tamanha centralidade à autoconsciência, Singer abre caminho para a desvalorização da vida daqueles seres humanos definidos como “não-paradigmáticos”: recém nascidos, pessoas com problemas cognitivos. Por não serem capazes de se perceber como indivíduos no mundo, fazer planos e projetar-se no futuro, suas vidas são menos valiosas no sistema filosófico de Singer. Desse modo, ele alega que o infanticídio de um recém nascido é um crime menos grave que o assassinato de um ser humano adulto. Não é muito difícil supor os efeitos deletérios que tal filosofia pode ter, mesmo que não seja a intenção do seu autor. Ela serve para respaldar a eugenia e o extermínio de seres humanos com problemas cognitivos, como era preconizado pelos nazistas.

Um outro problema do conceito de Singer para autoconsciência é a falta de um critério objetivo para a sua determinação. Um exemplo de experiência que costuma ser citado para determinar o grau de autoconsciência de um animal é o do reconhecimento no espelho. Bebês adquirem autoconsciência quando reconhecer sua imagem refletida no espelho. Animais não-humanos, da mesma forma, serão autoconscientes se forem capazes de reconhecer-se na imagem refletida que têm diante de si. Alguns animais que têm essa capacidade descrita são, além dos primatas superiores (chimpanzés, gorilas, orangotangos), os golfinhos e os elefantes.

Entretanto, o teste do espelho carece de objetividade e padece de antropocentrismo: supõe que só existe autoconsciência quando ela for semelhante à do ser humano. Não obstante, é sabido que, diferentemente do que acontece com seres humano, muitos animais não têm a visão como o sentido mais importante para a sobrevivência e comunicação. Muitos animais reconhecem uns aos outros pelo olfato, e nos faltaria subsídios para determinar a presença de autoconsciência nesses casos. Supor que um animal não-humano não é autoconsciente por não saber distinguir fisionomias é tão arbitrário quanto supor que o ser humano não é autoconsciente por não saber distinguir o próprio odor do odor exalado por outros de sua espécie.

A questão, porém, é mais profunda que isso. O conceito de autoconsciência é falho e limitado porque sequer explica porque a vida humana deve ser respeitada, uma vez que, como vimos, ela desvaloriza a vida de seres humanos não-paradigmáticos. Outro critério deve, portanto, ser encontrado.

Um dos autores que se dispôs a contestar as teses de Peter Singer sobre a autoconsciência e o princípio da igual consideração de interesses foi o advogado norte-americano Gary Francione, um dos expoentes do pensamento abolicionista.

Francione ressalta que a autoconsciência, junto com a racionalidade e a linguagem, já era usada como critério para distinguir animais humanos e não-humanos desde a filosofia clássica e moderna. Desse modo, a filosofia de Singer sequer pode ser descrita como paradigmática. A premissa singeriana de que os animais não se importam com a vida, mas sim como são tratados, também já está presente nos primeiros filósofos utilitaristas, como Jeremy Bentham. Decano do bem-estarismo, Bentham afirmava que o problema não é o uso de animais em si, mas a forma (cruel ou benevolente) como os usamos.

Francione, então, simplifica e ao mesmo tempo radicaliza o critério para a atribuição de direitos básicos a um animal. Para ele, a senciência é a única característica que importa para definir se devemos respeitar ou não a vida de um ser. Se é senciente, afirma Francione, o animal tem interesse em continuar vivendo. Afinal, a senciência é um meio para o fim da sobrevivência. Francione vai adiante e afirma que a senciência é por si só um indicativo de autoconsciência: quando sente dor, o animal percebe-se com indivíduo, pois sabe que é ele quem está sofrendo.

Da mesma forma, a capacidade de planejar o futuro não implica que um animal não se importe com sua própria vida e não esteja disposto a lutar por ela (que sua única preocupação seja o sofrimento imediato da dor). Francione cita um exemplo curioso: o caso de um ser humano que tenha a memória recente afetada (como o personagem do filme Amnésia): este ser humano hipotético tem uma capacidade muito limitada de planejar o futuro, mas seria ilógico afirmar, em decorrência disso, que ele não se importaria tanto com a sua vida ou que tirar-lhe a vida é um dano menor que a de um ser humano que tenha a memória intacta. Como dito acima, tal tese restringe o respeito à própria vida humana.

Do imperativo de preservar a vida animal decorre, na filosofia de Francione, que não podemos usar animais para quaisquer fins humanos pois, como no caso da escravidão humano, ao fazê-lo estamos reduzindo-os à categoria de objetos, cujos interesses básicos automaticamente perdem primazia ante os interesses de seus proprietários. Francione, portanto, elimina qualquer ambigüidade no que se refere à justificação moral do uso de animais em experimentos de laboratório. Nós, humanos, Devemos nos abstermos totalmente de usar animais não-humanos, para qualquer fim e, enquanto a abolição não é alcançada, boicotar todos os frutos dessa exploração – que é a prática do veganismo. Esta é a síntese da teoria abolicionista de Francione.

A senciência, além de tudo, tem a qualidade de ser um critério muito mais objetivo e, portanto, menos controverso que a autoconsciência. Ela é também mais abrangente. E uma conseqüência importante de seu emprego é que ela elimina as ambigüidades e hierarquias da filosofia singeriana. Em função dessas lacunas e hierarquias, não tardará o dia em que, a despeito do seu papel na revitalização do debate sobre direitos animais, a obra de Singer será uma fonte valiosa para os que preconizam a exploração animal. E, de fato, pela posição ocupada pelo autor e seu papel no debate contemporâneo, sua obra poderá transmutar-se na mais poderosa arma em defesa da exploração animal. De fato, o ambientalista Marc Dourojeanni já acusa os defensores dos direitos animais de interpretarem erroneamente a obra de Singer. Afirma ele, de forma inequívoca:


Baseados numa leitura pouco lúcida dos escritos do filósofo Peter Singer e, em especial de seu livro Libertação Animal (versão portuguesa de 2004), essas pessoas consideram que os humanos não têm o direito de matar animais e, assim, não devem se alimentar deles, nem muito menos matá-los para outros usos (couro, pele, penas) ou como conseqüência de atividades como a pesquisa científica ou as touradas, brigas de galo e rodeios. Também estão contra a caça e a pesca e, claro, contra qualquer tratamento aos animais que possa parecer cruel numa ou outra forma. [DOUROJEANNI, Marc. Ambientalismo e Direitos Animais. In: O Eco. 9 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www.oeco.com.br/marc-dourojeanni/42-marc-dourojeanni/16408-oeco_20295.]



Ele se equivoca ao supor que os abolicionistas têm Singer como referência principal, mas não ao supor que o autor não preconiza a tal abolição da exploração animal. Além disso, desconsiderando o debate ético, como tantos outros, relega a adoção do veganismo à mera questão de “opção pessoal” – o que, naturalmente, elimina a possibilidade de atribuição de direitos, pois direito não é algo que pode-se optar por violar. O conhecimento e credibilidade do autor sobre o tema, aliás, pode ser medido pelo fato de ele ignorar totalmente o conceito de senciência e demonstrar desconhecimento de distinções básicas da biologia, ao equiparar animais, bactérias e vírus. Não obstante, é este tipo de despreparo intelectual que devemos esperar dos críticos da filosofia dos direitos animais.

Na filosofia de Francione, muito mais coerente, por outro lado, tais distinções perdem o sentido. Todas as vidas sencientes merecem igual consideração de fato, o que quer dizer que interesses básicos iguais não podem ser colocados numa balança em função de critérios secundários. Desse modo, qualquer consideração sobre autoconsciência, teste do espelho ou capacidade cognitiva dos animais não-humanos torna-se ociosa e descartável no debate sobre os direitos animais. A questão é muito mais simples: todos os animais – com a possível exceção das esponjas – são sencientes. Por mais rudimentar que seja, eles têm a autopercepção de serem organismos vivos e seu interesse básico é continuar vivos – mesmo que não tenham a capacidade cognitiva para manifestar tal interesse. As diferenças que os separam de nós são, como já disse Charles Darwin, de grau, e não de espécie. Matá-los e explorá-los é, portanto, um dano moralmente injustificável. Respeitar sua vida e sua liberdade, nosso dever.

sábado, 2 de maio de 2009

Um Vegano Deve Usar Remédios?

Texto publicado no site da ANDA em março de 2009

Todos sabemos que o princípio básico do veganismo é o boicote aos frutos da exploração animal. Também sabemos que todos os medicamentos disponibilizados no nosso país são testados em animais. Veganos, aspirantes a veganos e onívoros, portanto, fatalmente colocam esta pergunta, com objetivos diferentes: um vegano deve usar remédios?
Veganos e aspirantes muitas vezes as colocam por se sentir diante de um dilema moral. Onívoros, com o objetivo de apontar outro tipo de dilema: entre a hipocrisia do vegano que se permite usar medicamentos e o radicalismo suicida daquele que se recusa a fazê-lo.
Tal questão não pode, porém, ser enfrentada de maneira simplória, nem determinista. Os princípios da filosofia vegana efetivamente entram em choque quando se trata de responder qual a posição eticamente aceitável para o uso de medicamentos testados. Porém, este dilema não é tão generalizado nem tão dramático quanto veganos e onívoros parecem simultaneamente pensar.
Dois fatores iniciais e determinantes ajudam a tirar esse debate do terreno maniqueísta do “ou tudo, ou nada”. O primeiro deles diz respeito ao próprio estilo de vida do indivíduo, e como este influi na sua saúde. Embora a medicina muitas vezes dedique-se exclusivamente a combater ou mitigar males de saúde já estabelecidos, e boa parte da pesquisa medicinal orientar-se nesse sentido, o fato de que a saúde depende muito mais do estilo de vida e da prevenção de doenças já é cientificamente fundamentado. Os hábitos de higiene, os exercícios físicos regulares, as boas condições sanitárias e ambientais (incluindo fatores como a poluição atmosférica e exposição a produtos tóxicos) e a boa alimentação são fatores determinantes para a saúde de um indivíduo.
Nesse sentido, a própria dieta vegana já contribui em grande medida para a preservação da saúde – e, conseqüentemente, a dispensa de medicamentos alopáticos. Contribui, mas não é suficiente. A dieta ideal deve ser não apenas vegana, mas prescindir ao máximo de alimentos industrializados, que contêm produtos potencialmente tóxicos, e alimentos criados com agrotóxicos. Mais fácil dizer que praticar, mas essa dieta o mais natural possível contribui enormemente para a manutenção da saúde daqueles que a seguem. Além disso, é importante observar os exercícios físicos e manter-se tanto quanto possível longe dos fatores ambientais potencialmente perigosos para a saúde. Na nossa sociedade urbana e industrializada, porém, um estilo de vida saudável nem sempre depende de nossas ações isoladas.
O segundo fator que contribui para desmitificar o dilema entre veganismo e medicamentos é a existência de terapias medicinais não alopáticas, cujos medicamentos não são testados em animais. Tenho em mente, principalmente, a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura. Essas são três opções plausíveis para aqueles de nós que vivem exatamente na situação descrita acima: vivem expostos a um ambiente lotado de ameaças reais e potenciais à saúde, as quais não se pode evitar apenas por meio de ações individuais. Sei bem do que estou falando, sendo alérgico praticamente desde o nascimento (muito antes de veganizar, portanto). Além de a adoção do veganismo ter reduzido sensivelmente minhas crises alérgicas (e minha dependência de medicamentos contra alergia, que não curam, apenas atuam sobre os sintomas), desde que busquei tratamento fitoterápico eu tive uma melhora gigantesca. Minhas crises alérgicas praticamente acabaram, acabando também com meu dilema sobre o uso de medicamentos para controlá-las. É público e notório, porém, que tais terapias não são aceitas ou acreditadas por todos. Eu mesmo não tive sucesso nas minhas tentativas com a homeopatia. Porém, cabe ressaltar que a fitoterapia e a homeopatia são terapias holísticas, ou seja, tratam do organismo como um conjunto integrado, e fazer uso delas sem tentar tratar dos demais aspectos insalubres de nossa vida reduz a chance de um tratamento bem-sucedido.
Há, porém, aqueles casos emergenciais que são brandidos pelos críticos do veganismo e das terapias “alternativas”. E se você sofre um acidente de trânsito? E se, apesar de todos os cuidados possíveis, é acometido de uma doença grave? É sabido que a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura são tratamentos de médio e longo prazos. Seria eticamente condenável e contraditório um vegano aceitar tratamento médico? Ou seria hipocrisia, como dizem os onívoros?
A minha opinião é um convicto “não”. Conheço caso de veganos que sofreram acidentes que requereram internação hospitalar – inclusive uma pessoa que considero uma das mais dedicadas e coerentes no que se refere ao veganismo. Conheço casos de veganos que necessitaram de cirurgia. E tenho um caso familiar de doença crônica em pessoa não-vegana, que depende de medicamentos para levar uma vida minimamente suportável. Eu não diria a nenhuma dessas pessoas que lutar para preservar suas próprias vidas é eticamente condenável. Não esqueçamos que o veganismo não defende o sacrifício pessoal, mas sim a abstenção de explorar. Todos os veganos que conheço que precisaram de apoio da medicina tradicional ocidental-moderna fazem suas partes: praticam o boicote, não consomem produtos testados e não tomam remédios em função de qualquer dor de cabeça banal. Porém, ao serem confrontados com a necessidade de preservar suas próprias vidas e sua integridade física e psíquica, não podem se curvar à chantagem dos onívoros. Não é incoerente aceitar tratamento médico se este for irremediavelmente necessário para salvar suas vidas ou manter sua integridade (não esqueçamos que a questão da integridade é fundamental, caso contrário seria eticamente aceitável explorar e não matar).
Não é culpa dos veganos se a ética médica especista faz testes em animais não-humanos, os quais são desnecessários e até perigosos para a saúde humana, pois induzem a conclusões enganosas. O fato é: os veganos não lutam (necessariamente) contra a medicina ocidental-moderna. Embora falha e limitada, ela pode, tanto quanto as demais, contribuir para prolongar o tempo de vida do ser humano e sua qualidade. Pessoalmente, acredito que a medicina ideal não está numa vertente exclusiva, mas no melhor que cada uma das vertentes tem a oferecer.
A posição eticamente coerente e correta é, portanto, denunciar os testes em animais não-humanos, lutar pela sua abolição e pelo emprego dos métodos substitutivos já existentes, boicotar totalmente o uso de produtos testados em situações que não sejam emergenciais. O sacrifício em favor de uma causa (dependendo de qual ela seja) é belo e louvável, mas nem sempre é a opção mais inteligente – pois um ativista vivo sempre pode contribuir mais pela causa do que um morto. Tampouco, o sacrifício pessoal pode ser exigido como regra de conduta, e qualquer estudioso da ética concordará quanto a este ponto. Assim, nem o vegano disposto a este sacrifício, nem o onívoro vigilante das contradições veganas podem exigi-lo daquele vegano que, por quaisquer razões que sejam, se veja diante do dilema de usar tratamentos e medicamentos testados para preservar sua vida e sua integridade. Um dilema que, como afirmei acima, é bem menos comum e dramático do que o senso comum sugere.

terça-feira, 24 de março de 2009

Alianças e Estratégias: Equívocos Presentes, Caminhos Futuros

Texto publicado no site da Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA)

Este mês de fevereiro completam-se dois anos que me tornei ativista pelos direitos animais.

Desde que aderi ao movimento tenho insistido na necessidade de os ativistas veganos abandonarem o espontaneísmo e adotarem uma postura mais responsável do ponto de vista profissional e intelectual. Não é porque o ativismo é voluntário que ele pode ser feito com desleixo. Não é porque você tem convicção das suas idéias que não tem o dever de desenvolvê-las filosoficamente para credenciar-se para o debate. Isto é, se queremos realmente que nossas ações em prol dos direitos animais tenham impacto na sociedade, seja na escala micro, das relações pessoais, seja na escala macro, de interferir nos processos de exploração animal.

A questão é recorrente. Vejo isso se repetir há dois anos. Quando suponho que uma fase do amadurecimento do movimento foi superada, ela volta como em ciclos. Lógico que declaro isso tendo como referência, em particular, o ativismo no Rio de Janeiro. O movimento progrediu bastante nos últimos dois anos. Há centenas de pessoas competentes e dedicadas que fazem a diferença para esse progresso. Não obstante, elas se defrontam repetidamente contra um muro de preconceitos, equívocos, mal-entendidos que puxam o movimento para trás. E não estou falando dos onívoros.

A “ideologia” do onivorismo é uma referência constante nos meus textos, pois meus objetivos primários são despertar a reflexão crítica dos onívoros sobre as fragilidades éticas e lógicas dos seus argumentos, e também fornecer subsídios aos vegetarianos para se credenciarem ao debate, pois duas coisas são fatais na luta pelos direitos animais: um vegano sem argumentos e sem saúde.

Entretanto cada vez mais me convenço de que está faltando aos vegetarianos e veganos reflexão crítica sobre si mesmos. Não que eu não soubesse disso há dois anos, mas me surpreendo com esse eterno retorno de mitos e equívocos, prejudicando o movimento quando pensam estar impulsionando-o.

Alguns desses exemplos:

- A defesa do ovolactovegetarianismo como uma “etapa” ou mesmo o “mal menor” em relação ao onivorismo.

- Na mesma linha, a defesa do bem-estarismo como um “mal menor” em relação à exploração sem regulamentação.

- Consequência desta segunda, a ideia de que bem-estaristas e abolicionistas são aliados em prol dos animais e podem e devem dialogar e cooperar – em pé de igualdade. Na verdade, os bem-estaristas são aliados dos exploradores, fato que Gary Francione já demonstrou repetidamente em textos traduzidos para o português – mas que ativistas que se consideram autossuficientes, acham o estudo desnecessário e acreditam que basta a força da convicção para defender uma ideia não leram.

- A lógica do “vale-tudo” em que, para convencer alguém a se tornar vegetariano, deve-se usar não o argumento mais correto, e sim o mais convincente – sem levar em consideração o dano que argumentos falhos podem provocar: desmoralizar o ativista e, logo, a causa como um todo; induzir o interlocutor a atitudes que possam prejudicar a sua própria saúde, no caso de informações nutricionais equivocadas; o abandono do vegetarianismo/veganismo a partir da constatação de que as premissas que levaram alguém a adotá-lo – reforçadas por ativistas que supostamente sabem do que falam – são falsas. Abordei eu mesmo esse tema no meu texto sobre os discursos transversais.

Cada um desses pontos já foi rebatido à exaustão por ativistas sérios, dedicados e que sabem do que estão falando. Além dos textos de Francione, recomendo fortemente os textos da revista eletrônica Pensata , particularmente o de Luciano Cunha, que trata dos equívocos do movimento em defesa dos animais, "Está tão na cara que é difícil de enxergar". O texto tem sete partes.

Mas a ignorância militante (ou displicência irresponsável) é muito difícil de ser superada. Já ouvi vários tipos de bobagens e irresponsabilidades de veganos. Um tipo que me espanta particularmente é a questão da vitamina B12, devido à sua seriedade. Incapazes – por pura falta de estudo sobre a questão – de responder ao falso argumento de que a necessidade de suplementação desqualifica o veganismo como opção alimentar saudável e natural, alguns veganos preferem dar dicas sem comprovação científica como comer algas ou tomar água de chuva (e se houver seca?) e de cachoeira (claro, tem uma cachoeira a menos de 1 km de todos os domicílios), negar a necessidade de suplementação ou apelar para o “conspiracionismo” (é tudo mentira da indústria farmacêutica).

Pode-se mesmo questionar o real grau de comprometimento que ativistas que não se dispõem a aprimorar seus conhecimentos têm com a causa. Nesses dois anos, lamentavelmente, pude constatar que, mesmo num meio supostamente governado pelos princípios e pela ética, há pessoas que promovem intrigas, boicotam e prejudicam colegas e se envolvem no ativismo tendo em vista tão somente a promoção pessoal.

Nesse ponto, quero fazer duas ressalvas. Primeiro: o reconhecimento que muitos ativistas obtêm por meio do ativismo sério e dedicado, que pode trazer benefícios materiais – mas nem sempre é o caso, pois o ativismo exige muitos sacrifícios – é absolutamente legítimo. Tampouco é correto criticar profissionais que colocam seu ofício a serviço da causa, extraindo daí também o seu sustento. Ou será que honesto é apenas o onívoro que decide investir em produtos veganos por uma esperteza mercadológica? O que estou criticando são pessoas que prejudicam a causa em função de seus interesses pessoais, promovendo brigas, criando competição, concentrando poder e responsabilidades, mesmo quando lhes falta competência para tanto. Segundo: não estou defendendo, com isso, que todos os ativistas têm de ser amigos, aliados e agir em conjunto. Aliás, essa mentalidade aliancista é extremamente prejudicial ao movimento, e é especialmente contra ela que me bato constantemente aqui no Rio de Janeiro. Por isso vou falar um pouco mais detidamente sobre ela.

O primeiro efeito da mentalidade aliancista é tentar juntar pessoas com matrizes de pensamento distintos, sob a premissa – nem sempre verdadeira – de que têm um objetivo comum. Aqui no Rio de Janeiro isso tem sido traduzido na estratégia de juntar bem-estaristas, abolicionistas, libertários e espiritualistas em favor da “causa comum” do vegetarianismo.

Consequências? Um discurso incoerente que confunde mais do que esclarece o público. Enorme perda de energia em reuniões, debates, discussões onde matrizes de pensamento que, na verdade, são bastante distintos, jamais vão se entender. A perda de tempo e energia resultantes apenas atrasam nossos empreendimentos e reduzem sua eficiência, prejudicando a própria difusão da causa e, portanto e principalmente, prejudicando os animais. Este é um paradoxo fundamental: o discurso aliancista legitima-se alegando que toda ajuda é bem-vinda e necessária para ajudar os animais, mas o efeito que ele provoca é o oposto do propósito que defende.

Há tempos tenho defendido a estratégia inversa: em vez de um aliancismo que faz tábula rasa das diferenças, declarando-as como empecilhos – e assim apagando as individualidades e identidades diversas – temos que adotar a estratégia de grupos pequenos, agregados a partir de afinidades filosóficas e ideológicas, que cooperem NA MEDIDA DAS POSSIBILIDADES, quando suas opiniões convergirem. Desnecessário dizer que por definição essa minha proposta exclui a possibilidade de alianças com bem-estaristas, pois nós devemos estabelecer o veganismo e abolicionismo como PONTOS INEGOCIÁVEIS. Se alguém não concordar com estas premissas, não devemos nos aliar com eles. Alguns dizem que esta é uma atitude segregadora. Este é um argumento ignorante. A coerência deve ser um princípio basilar de nosso movimento, e ela não supõe o isolamento, mas sim o diálogo. Dialogar, porém, é diferente de cooperar. A cooperação só pode existir quando existem metas comuns. O problema, portanto, e isso é o mais preocupante, é que muitos dos que se dizem defensores dos direitos animais AINDA NÃO VÊM O VEGANISMO E O ABOLICIONISMO como metas fundamentais do movimento.

Um exemplo pode clarificar a minha argumentação: durante a ditadura militar, comunistas e opositores liberais aliaram-se, pois sua meta era restabelecer o regime democrático. Naturalmente, com o fim da ditadura, essa aliança se dilui, pois as metas se tornaram distintas: os liberais defendem o regime capitalista, os comunistas querem derrubá-lo. Mal comparando, os defensores dos direitos animais querem criar alianças entre liberais e comunistas, e consequentemente despendem tempo e energia preciosos nesse trabalho improfícuo.

O I Encontro Nacional de Direitos Animais, realizado em maio de 2008, é um bom exemplo da estratégia que tenho defendido: foi concebido como um evento abolicionista, e conseguiu atrair participantes onívoros, ovolactovegetarianos, bem-estaristas, a partir da receptividade e do diálogo, mas sem abrir mão de sua coerência e seus princípios. E foi desse modo que naquele evento muitas pessoas foram atraídas para o veganismo e o abolicionismo. Isso não teria acontecido se uma atitude falsamente democrática tivesse posto pontos de vista distintos em pé de igualdade.

Infelizmente não consegui muitos adeptos para minhas concepções estratégicas na cidade do Rio de Janeiro, e tenho convicção de que este é um dos fatores pelo qual o ativismo nesta cidade está aquém do seu potencial, uma opinião que parece ser comum a todos os ativistas, independentemente das divergências que possam ter em outras questões.

Nós, veganos, temos que começar dando passos pequenos, realistas. O crescimento, a projeção, as alianças serão o resultado natural de um trabalho feito com competência, dedicação e coerência. Nesse ponto gostaria que minha experiência servisse de exemplo: a melhor forma de fazer com que o conjunto e o individual caminhem juntos é fomentar o talento natural dos ativistas, em vez de deliberar tarefas a esmo. Cada militante precisa encontrar seu lugar específico; desse modo, estará fazendo algo prazeroso para si, consequentemente produzindo um trabalho mais eficiente e contribuindo para a causa como um todo.

De dois anos para cá eu mesmo tenho me esforçado enormemente para crescer como ativista, e percebo que ao fazê-lo, além do crescimento individual, contribuo cada vez mais para a divulgação do veganismo e do abolicionismo sobre bases sólidas. A pesquisa, a reciclagem e atualização das ideias são uma necessidade constante que os ativistas que levam suas próprias convicções a sério devem observar.

A primeira e mais fundamental tarefa do movimento pelos direitos animais, felizmente, tem progredido rapidamente: dar clareza aos nossos propósitos. Isso implica a adoção do veganismo e abolicionismo como fundamentos prático e filosófico, respectivamente. A segunda tarefa, a partir daí, é ter clareza de que nem todos aceitarão essas premissas, e termos maturidade para seguirmos adiante sem ceder às ilusões de grandes alianças entre formas de pensamento distintas ou puramente inconciliáveis. Em paralelo, cabe-nos desenvolver estratégias eficientes para levar o veganismo abolicionista ao conjunto das nossas comunidades. Não estratégias que escondam nossas ideias ou enganem o público – como são os discursos transversais e aliancistas. O que nós precisamos é de uma estratégia que seja eficiente e coerente com os nossos propósitos. E este último é o ponto em que milhares de movimentos políticos e sociais – como o nosso – falharam no passado. Ao comprometer suas ideias e princípios, sua coerência, em nome do crescimento, tornaram-se uma sombra do que outrora foram e sacrificaram o fim – a emancipação – em favor do meio – o poder. Devemos aprender com estas lições do passado: não sucumbir à sedução do poder, nem à ilusão de que o poder acelera o árduo e longo processo da emancipação social. Ao contrário, seu canto da sereia afoga os ideais de libertação sob o oceano de dominação do qual é constituído.

terça-feira, 17 de março de 2009

Conversando sobre Direitos Animais

Texto publicado originalmente no site Vista-se em 12 de janeiro de 2009

O maior propósito de ler, escrever e debater textos sobre direitos animais é aprimorar nossa capacidade de responder ao ceticismo alheio. Ter a resposta certa pode muitas vezes representar a diferença entre ter um amigo a fazer piadas constantemente, conquistar o seu respeito ou, em última instância, conquistar um aliado na sua causa.

Por isso é sempre importante ter uma compilação dos questionamentos mais recorrentes em relação aos direitos animais para saber o que responder quando aquele coringa for sacado da manga de um onívoro. Quem é vegetariano sabe que essas questões não são muitas – apenas varia a sua construção:

1. Mas de onde você tira suas proteínas?

2. Você não vai ter anemia?

3. E as plantinhas, não sentem dor?

4. Tudo bem que você só queira comer mato, mas que direito você tem de me dizer o que comer?

5. Num mundo cheio de pessoas passando fome, é até imoral você se recusar a comer carne. Ou sua variação: Num mundo cheio de pessoas passando fome, as pessoas não podem se dar ao luxo de se recusar a comer carne.

6. Por que você não gasta seu tempo com algo mais útil e elevado, como cuidar crianças carentes? Outra variação famosa dessa diz: Enquanto houver gente pobre e faminta no mundo, os animais não serão prioridade pra mim.

7. Pesticidas da agricultura matam mais animais que a pecuária.

8. Você está comparando seres humanos com animais, e isso é igualmente absurdo e imoral.

(Inclusive, é muito comum que elas se apresentem mais ou menos nessa ordem.)

Deixo os mitos nutricionais a cargo de profissionais mais bem preparados para lidar com eles. Limito-me a dizer, portanto, que carência de proteína ou anemia são conseqüência de uma dieta pobre, ou mesmo de subnutrição. Retirar a carne e subprodutos (leite e ovo) da dieta NÃO implica uma dieta pobre, nem subnutrição. Veganos de fato precisam de suplementação da vitamina B12, mas isso não é muito difícil de se resolver, nem é desculpa para não ser vegano, já que a maioria de nós suplementa iodo (no sal), ácido fólico (na farinha), flúor (na água) sem maiores questionamentos filosóficos sobre se esta suplementação requerida pela vida moderna condena nossa dieta (ou nossa civilização). De mais a mais, há vegetarianos – e veganos – o suficiente no mundo para provar este ponto. Mesmo associações de médicos e nutricionistas, além de profissionais dessas áreas que conhecem de fato do assunto já declaram isso, o que exclui que se trate apenas de doutrinação do “fortíssimo” lobby vegano (pausa para risos). Eu fiquei positivamente surpreso ao constatar que nenhum médico que consultei até hoje, desde que me tornei vegano, me chamou de louco ou tentou me convencer a mudar de dieta. Empiricamente, percebo que os profissionais da saúde estão deixando ignorância e o preconceito em relação a este assunto.

No que concerne ao resto, a qualidade das perguntas não melhora em nada. Uma breve exploração ponto a ponto:

3. Não há evidência científica de plantas sentem dor; mesmo que sentissem, isso não significa que não deveríamos deixar de comer animais; e se nossa preocupação é salvar plantas, mataríamos menos delas se fôssemos vegetarianos e não desperdiçássemos toneladas de grão e folhagem alimentando animais para comê-los a seguir.

4. Defender o veganismo não equivale a impor-lhe minha dieta. Entretanto, já que você falou em direitos, as constituições democráticas – e o bom senso – reconhecem que as pessoas têm o direito à livre manifestação de pensamento. Mas já que você insiste na pergunta, não é questão de autoritarismo, mas puramente de lógica: não faz sentido que seu direito à picanha seja mais importante que o direito do boi à vida e à liberdade. Ninguém acusaria de autoritarismo a uma pessoa que limita a liberdade do pedófilo de fazer sexo com crianças; que limita a liberdade do estuprador de violentar mulheres; ou que limita a liberdade do maníaco assassino de matar pessoas.

5. Qualquer pessoa relativamente bem educada (digamos, com o ensino fundamental completo) sabe que o problema da fome do planeta não se deve à falta de alimentos, mas à concentração de recursos e de riqueza. Mas de fato a questão se torna mais interessante que isso quando recordamos que a pecuária drena recursos naturais, ocupa mais terra que a agricultura e é economicamente mais caro, de modo que a criação de animais para abate apenas ajuda a agravar o problema da fome.

6. Como sempre digo, nada nos impede de fazer ambos. Ou melhor ainda: você não precisa, a rigor, fazer nada pelos animais, na sua vida cotidiana. Deixar de explorá-los é o MÍNIMO que se pode fazer. Não custa nada (não, o estilo de vida vegano não é mais caro), a não ser um pouco mais de cuidado na hora de ir ao supermercado e farmácia e disciplina para comer na rua. De fato, é provável que você economize com o que gastaria em carne, laticínios, ovos, produtos químicos testados em animais e remédios dos quais não se precisa realmente. Então, você pode continuar tão politicamente engajado quanto antes em salvar as crianças, acabar com a fome no mundo, promover a paz mundial, fazer uma revolução e mudar o mundo. Apenas estará, ao mesmo tempo, tomando uma atitude COERENTE com tudo isso (tanto na prática como na teoria). O mais provável, porém, é que quem fez essa pergunta não faça nada nem pelas crianças, nem pela paz mundial.

7. Isso simplesmente não é verdade. Animais criados para o consumo também consomem, indiretamente, pesticidas e produtos testados em animais. As taxas de uso disso tudo seriam menores se as pessoas comessem apenas vegetais. Quem paga por “boi verde” pode pagar tranqüilamente por alimentos orgânicos. Os quais, aliás, são caros apenas por “grife” – triste este mundo em que saúde e respeito ao meio ambiente se tornam objeto de ostentação (e os economistas ainda dizem que cuidaríamos melhor do planeta se as florestas e a água tivessem valor de mercado…). Alimentos orgânicos podem ser igualmente produtivos e baratos. Por fim, a quantidade de terra liberada pela pecuária para a agricultura tornaria a necessidade do uso de pesticidas ainda mais duvidosa.

8. Aqui, um pouco de conhecimento de biologia e antropologia não faria mal. Comparar animais e seres humanos é o que eu chamaria de uma analogia perfeita. Muito melhor do que as metáforas futebolísticas que ganharam a política. Seres humanos são animais e, portanto, qualquer diferença que exista entre nós (humanos) e eles (animais não-humanos) é meramente de grau, não de tipo. Não existem habilidades humanas que não estejam presentes (em maior ou menor grau) em outros animais. Não há, portanto, nada de absurdo e imoral nessa comparação. Respeitar animais não implica desrespeitar seres humanos – antes o contrário, e qualquer defensor dos direitos animais que não valorize igualmente os direitos humanos está profundamente equivocado. Como seres sencientes, temos todos os mesmos direitos básicos – aqueles direitos que se referem a essa nossa característica distintiva que é a senciência. São estes direitos: a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica. Afinal, é para proteger suas vidas e sua integridade que animais são sencientes, e só na medida em que são livres eles podem fazê-los por si mesmos.

Pelo contrário, e por mais absurdo que pareça à primeira leitura, são os antropocentristas que desmerecem o ser humano e têm uma perspectiva moral limitada – e perigosa. Se o que torna o ser humano especial são suas habilidades especiais – compor sinfonias, escrever romances, desbravar o universo, partir o átomo, defender teses, transformar a natureza a ponto de deformá-la (e com isso ameaçar sua própria existência humana) ou comunicar-se num determinado idioma ou proferir uma determinada religião ou ideologia – então qualquer ser humano desprovido dessas habilidades especiais deixa automaticamente de ser especial. Torna-se, portanto, descartável. Eis então como abrimos as portas para a eugenia, o racismo, a xenofobia, a limpeza ética, os campos de concentração, os gulags, o extermínio em massa e a bomba atômica.

Com o tempo pretendo responder mais detidamente a cada uma dessas perguntas (exceto à oitava, que considero já satisfatoriamente respondida com o texto “Por que animais têm direitos?”). Queria, por final, deixar perguntas aos leitores. Aos vegetarianos e veganos: quais foram os questionamentos mais estranhos que já ouviram, tanto no aspecto positivo, de desafiador, quanto no negativo, de ser risível? Aos onívoros que eventualmente lerem esta coluna: que outras objeções racionais vocês levantariam contra o veganismo? Não vale o prazer da picanha, pois não existe justificativa racional para um prazer gustativo.

OBS: Algumas dessas questões já foram aprofundadas em outros textos aqui publicados.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Novo Sistema de Trabalho

Ano novo, novo sistema de trabalho.

A partir de agora tenho colunas permanentes em dois sites.

Vista-se: www.vista-se.com.br

Agência de Notícias dos Direitos Animais (ANDA): www.anda.jor.br


Além de contribuir com a Revista Eletrônica Pensata Animal, embora sem uma periodicidade certa: www.pensataanimal.net


O compromisso que tenho para escrever textos para estes sites absorve todo o tempo disponível que tenho para produzir textos sobre o tema dos direitos animais, mas não pretendo por isso abandonar o blog. Minha idéia é mantê-lo como uma base de dados que concentre todos os meus textos, já que muitos deles estarão disponíveis em um site, mas não em outro.

O texto abaixo, As Camadas da Opressão, é o primeiro desse novo sistema, tendo sido publicado na ANDA na semana passada. Embora não tenha sido uma atitude planejada, ele complementa muito bem o último texto publicado no blog, em dezembro.

Agradeço a todos aqueles que têm lido e comentado meus textos e peço que continuem dando suas impressões, fazendo críticas e sugestões.

As Camadas da Opressão

Publicado em: ANDA, 9 de fevereiro de 2009

A questão da dominação e do poder freqüentemente é analisada sob uma perspectiva maniqueísta. Especialmente na esfera política – seja tradicional, dos partidos, sindicatos – seja dos movimentos sociais e organizações dificilmente encontra-se a tentativa de uma análise ponderada e justa. Por ponderada e justa não me refiro a imparcial, nem nivelador. Pois é impossível – e indesejável – não ter uma opinião a respeito de um determinado assunto, e muito menos que todas as opiniões se equivalham.

Coisa muito diferente é supor que um dos lados estará sempre com a razão, menos ainda supor que o poder e a dominação são caminhos lineares. Na história da humanidade, a opressão se manifesta em diferentes sentidos, e muito freqüentemente aquele que é o oprimido numa determinada situação, torna-se o opressor em outra. Em certos casos, isso se dá por sucessão lógica, quando os ventos mudam de direção e a ordem social é subvertida. Em outros, e eu diria que muito mais freqüentemente, oprimido e opressor convivem simultaneamente no mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos. Alguns exemplos são óbvios: racismo, sexismo, xenofobia, preconceito religioso são males que atingem a sociedade de modo muito democrático e, de fato, os grupos sociais desfavorecidos são muito vulneráveis a eles, pois sua situação de exclusão social favorece a competição pelos escassos recursos e a busca de “bodes expiatórios”. E também freqüentemente os grupos dominantes sabem explorar muito bem esta situação. Pensemos em exemplos como o da Alemanha nazista, em que os dissabores de um país arruinado foram creditados aos judeus – aproveitando-se, naturalmente, da presença histórica do anti-semitismo naquele país. O caso da discriminação e violência contra mulheres entre as classes trabalhadoras, o preconceito popular contra imigrantes na Europa (onde os partidos neo-fascistas colhem a maior parte de seus votos junto às classes média e baixa). São inúmeros os exemplos. Em cada grupo marginalizado na sociedade pode-se encontrar uma dose significativa de preconceito e violência latente que não necessariamente se voltará contra o opressor, mas será canalizado para subjugar um outro grupo.

A explicação para esse fenômeno certamente não é uma tarefa simples, pois ela está ligada a diversos fatores. Não só a própria essência do poder, em que ele consiste e porque o ser humano o persegue, mas também fatores históricos, sociais e econômicos. Tal questão ficará mais clara se, em vez de uma explicação abstrata, fornecermos um exemplo concreto. No famoso caso da Alemanha nazista, o anti-semitismo se explica por uma histórica intolerância religiosa que, desde a Idade Média, relegou os judeus às atividades comerciais e financeiras. Não podemos esquecer que, na época feudal, a principal fonte de riqueza era a posse de terra. Os judeus, por sua religião, não tinham acesso a ela, limitando-se ao comércio e ao empréstimo de dinheiro. Daí sua fama de usurários (sovinas, mesquinhos, gananciosos, e toda sorte de adjetivos de sentido semelhante), registrada em textos tão antigos quanto O Mercador de Veneza, de William Shakespeare. Os judeus prosperaram nessa atividade e, com o advento do capitalismo, ascenderam a posições importantes na hierarquia econômica da sociedade – o que, por sua vez, os tornou alvo do maior número de teorias conspiratórias possíveis, já que na sociedade capitalista são os detentores do poder econômico que dão as cartas. Muitos europeus cristãos deveriam, naquela época, se perguntar por que, nas suas sociedades, eram aqueles “estrangeiros” que ocupavam postos de destaque em ofícios lucrativos, sem suspeitar que seu próprio preconceito alimentara tais diferenças. Desse modo, a posição social privilegiada dos judeus (não todos, é importante ressaltar), associada à discriminação imemorial por eles sofrida, ambas intimamente vinculadas, tornaram-nos o alvo perfeito da ira da Alemanha humilhada e arruinada após a Segunda Guerra Mundial.

A história não termina aqui. O Holocausto judeu fortaleceu o reclame antigo desse povo por um Estado próprio, concretizando-se no Estado de Israel, nascido em 1º de janeiro de 1948, sob os auspícios da ONU e das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Não se tratou, como muitos dizem, de “caridade com a terra alheia”, já que desde o século XIX os judeus emigravam para a Palestina, e a divisão territorial feita pela ONU respeitava os limites das ocupações judaica e muçulmana. O resultado, porém, todos conhecemos. Os oprimidos de outrora tornaram-se opressores. O maniqueísmo, porém, não permite ver que muçulmanos também cumpriram o papel de agressor ao longo da história, e que muitos deles sequer reconhecem o direito dos judeus ao Estado de Israel – ainda hoje. Da mesma forma que o conflito externo com Israel ajuda a esconder a opressão interna sofrida pelo povo palestino. Seus líderes não são heróis da liberdade. Muitos deles não passam de indivíduos corruptos, autoritários e ineptos – como, aliás, a maioria esmagadora dos líderes políticos do mundo.

Mas, afinal, por que escrevo sobre isso num espaço voltado para debater os direitos animais?

Porque na escala da opressão, os animais não-humanos ocupam o último degrau. É na exploração animal que a quase totalidade da humanidade, opressores e oprimidos, se igualam, se irmanam. Embora, como propriedade que são, os animais não-humanos são mais “acessíveis” aos poderosos do mundo*, o fato é que quase todos os grupos sociais praticam s exploração animal ou, em alguma medida, se beneficiam dela. A exploração animal, dominação humana sobre outros animais, é talvez a ideologia mais difundida e mais amplamente aceita do mundo. Quase todos aceitam-na não apenas como natural e desejável, mas igualmente como justa e correta. Os seres humanos desvalidos quase sempre podem consolar-se em saber que, ao menos, não são animais (e, quando vítimas de uma injustiça particularmente aberrante, reclamar que não podem ser tratados como tal). Estilos de vida e culturas inteiras se formaram em torno da escravidão de animais não-humanos. Não surpreendentemente, a cultura mais antropocêntrica do mundo – a judaico-cristã – teve origem entre povos pastoris. Os animais não-humanos são os maiores explorados da terra. São considerados menos que os escravos ou os trabalhadores remunerados; seus direitos são nulos. Eles estão em último lugar na escala, também, porque eles são o único grupo oprimido que não podem se levantar contra seus opressores. Isso torna o nosso papel, como defensores dos direitos animais, ainda mais importante. E nossa responsabilidade, ainda maior.

Claro, numa ironia final, nós, humanos, sempre podemos alegar que, se pudesse, a vaca faria o mesmo conosco. E isso ainda nos faz sentir superiores a ela – nós temos o poder de subjugá-la, ela não; nós triunfamos – reinamos – sobre todos os outros animais. Sem perceber, com esta posição, estamos chancelando a idéia de que aquele que pode explorar, escravizar, submeter, matar, é um ser superior. E, se não o fizer, é um tolo. Evidenciando, portanto, que por mais que não reconheçamos isso publicamente, nossa sede de poder nos torna uma espécie que não é apenas predisposta à violência, mas glorifica-a.

Nosso comportamento com os animais não-humanos ratifica tudo o que fazemos entre nós mesmos. Se está correta a moral que aplicamos a todo o reino animal, então a ética comanda que sejamos brutais e vis entre nós mesmos – e que não há nada de injusto e imoral nisso. E é justamente por isso que nenhum ser humano que se levanta contra as injustiças provocadas contra outros seres humanos jamais poderá se mostrar indiferente ao sofrimento, à exploração, à objetificação dos animais não-humanos sem se mostrar portador de uma filosofia ética e política míope – e, em última instância, portardor de uma atitude incoerente e hipócrita.

O veganismo é, portanto, não apenas uma IMPOSIÇÃO ÉTICA como afirmei em meu texto anterior. Ele é, igualmente, uma IMPOSIÇÃO POLÍTICA a todos os que combatem as injustiças do mundo e recusam a idéia de que a injustiça é inevitável e aceitável. A injustiça, a opressão, a dominação humanas, sejam seus alvos outros seres humanos ou animais não-humanos, não podem ser vistas como simples fenômenos da natureza. Elas são construções sociais que podem – e devem – ser abolidas.

* E daí alguns fatos interessantes, como o uso da ingestão de proteína animal como indicador de prosperidade econômica ou a falácia de que o vegetarianismo é imoral num mundo assolado pela fome, quando na verdade a maioria esmagadora da carne do mundo vai para o estômago dos abastados.